Parece−me que não devemos partir da forma do tribunal e perguntar como e em que condições
pode haver um tribunal popular, e sim partir da justiça popular, dos atos de justiça popular e
perguntar que lugar pode aí ocupar um tribunal. É preciso se perguntar se esses atos de justiça
popular podem ou não se coadunar com a forma de um tribunal. A minha hi
pótese é que o tribunal
não é a expressão natural da justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica
reduzi−la, dominá−la, sufocá−la, reinscrevendo−a no interior de instituições características do
aparelho de Estado. Exemplo: em 1792, quando a guerra se desencadeia nas fronteiras e se pede
aos operários de Paris que partam para morrer, eles respondem: "Não partiremos antes de ter feito
justiça aos nossos inimigos internos. Enquanto nós nos expomos, eles estão protegidos pelas
prisões onde os enclausuraram. Só esperam a nossa partida para saírem de lá e restabelecerem a
antiga ordem das coisas. De qualquer modo, aqueles que nos governam hoje querem utilizar
contra nós, para nos fazer entrar na ordem, a dupla pressão dos inimigos que nos invadem do
exterior e dos que nos ameaçam no interior. Nós não iremos lutar contra os primeiros sem antes
nos termos desembaraçado dos últimos". As execuções de Setembro eram ao mesmo tempo um
ato de guerra contra os inimigos internos, um ato político contra as manobras dos homens no poder
e um ato de vingança contra as classes opressoras. Durante um período
de luta revolucionária
violenta, isso não seria um ato de justiça popular, pelo menos em primeira abordagem: uma réplica
à opressão, estrategicamente útil e politicamente necessária? Ora, logo que as execuções
começaram em Setembro, homens da Comuna de Paris, ou próximos dela, intervieram e
organizaram a cena do tribunal: juizes atrás de uma mesa, representando uma terceira instância
entre o povo que grita "vingança" e os acusados que são "culpados" ou "inocentes"; interrogatórios
para estabelecer a "verdade" ou obter a "confissão"; deliberação para saber o que é "justo";
instância imposta a todos por via autoritária. Será que não vemos reaparecer aqui o embrião, ainda
que frágil, de um aparelho de Estado? A possibilidade de uma opressão de classe? Será que o
estabelecimento de uma instância neutra entre o povo e os seus inimigos, susceptível de
estabelecer a fronteira entre o verdadeiro e o falso, o culpado e o inocente, o justo e o injusto, não
é uma maneira de se opor à justiça popular? Uma maneira de desarmá−la em sua luta real em
proveito de uma arbitragem ideal? E por isso que eu me pergunto se o tribunal, em vez de ser uma
forma da justiça popular, não é a sua primeira deformação.
UEB????
ARTE