Teleperformance.

Maria Beatriz de Medeiros. Universidade de Brasília / Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos.

 

O próprio da linguagem artística Performance é acontecer na vida (em presença real e em tempo real), e estar aberta à participação do público, por vezes tornando-o co-autor. A tecnologia do vídeo permite que a performance se dê, em tempo quase real, no entanto em presença fantasmal, presença espectral que denominamos telepresença. O interesse da tecnologia numérica na rede dita de comunicações, Internet, é a possibilidade da performance ser interativa em tempo real; aspecto onde esta tecnologia se encontra, mais plenamente, com a linguagem artística Performance. Em uma web-conferência, a rede dita de comunicações, na realidade rede de informações, torna-se rede de comunicações através da possibilidade de interação.

            Nossa investigação é sobre a possibilidade de um "corpo informático", de um "corpo-carne numérico", possibilidade de sobrevivência de um corpo sensual, tornado imagem, ou melhor, um corpo tornado presença apenas pelo bombardeamento de raios luminosos gerando sensação de movimentos, possibilidade de interação efetiva. Desejo de presença real. Será que perceber que o desejo do outro existe já é capaz de gerar prazer, será que perceber que o desejo do outro, por mim, existe já é capaz de prazer estético? O belo, se dá na imagem do outro na tela do monitor, ou se dá no meu saber que aquele, outro, está ali, por desejar estar comigo? Possibilidade de estar junto sem ser fisicamente real, no entanto estando presentes. Corpo real, ausente, presente pela teleperformance.

A estética foi assim definida pelo pensador Mikel Dufrenne:

"O objeto da estética… é de forma geral aquilo que concerne a aisthesis, o sentir, o sensível, o gosto e aquilo que é experimentado (goûté). Não há razão para limitar o gosto ao bom gosto, ao gosto que julga as obras de arte. Experimentar não é somente exercer a atividade própria a um sentido determinado, como o desgustador de vinhos; e mesmo neste caso a maior parte dos sentidos, que são solidários entre eles, entram em jogo; todo o corpo do degustador se mobiliza para experimentar (goûter) o "corpo" do vinho, sua fruta, seu calor, e mesmo sua cor; e todos estes sentidos que colaboram no gosto são eles-mesmos capazes de gosto. Experimentar (goûter) é entrar em uma certa relação com o sensível, fazer justiça a este, tomá-lo deixando-se possuir (en prendre possession tout en se laissant posséder). Ora, o sensível que entra em comunhão com o sentimento, não é somente a obra de arte, é também o que Merleau-Ponty chama de a carne do mundo (la chair du monde). Toda carne no mundo pode ser experimentada (goûtée) como objeto estético...

"Experimentar (Goûter) uma paisagem, não é somente contemplar de um ponto de vista privilegiado, é também, aí penetrar, aí vagar (errer), sentir o vivo do ar ou o ardor do sol sobre o rosto, escutar o canto dos pássaros, farejar os odores da relva, chegar a uma comunhão carnal com todas as zonas erógenas do sensível". 1

Assim diríamos que a estética é aquilo que diz respeito aos sentidos, que os envolve, os impregna, aquilo que dá prazer, mas também aquilo que dá desprazer. O desprazer também mobiliza os sentidos, também nos impregna da carne do mundo. Pensamos, neste momento no fotógrafo Witkin que, creio, permite experimentar a carne do mundo, uma carne do mundo que nos toma de assalto deixando-se possuir em um desprazer arrazador.

Para Kant é belo aquilo que dá prazer, universalmente, sem conceitos. A arte dá prazer, ou desprazer, permite "uma comunhão carnal com todas as zonas erógenas do sensível", e exatamente por ser assim, é sem conceitos. O objeto da estética (a estética do objeto) nos deixa sem conceitos; no entanto revira, a posteriori, os conceitos a priori constituidos. Neste sem conceitos nos entregamos à carne do mundo em uma comunhão não só carnal, envolvendo todos os sentidos, mas ainda universal. Não um universal de fato, mas um universal simbólico, ou melhor, um universal ressentido como tal, mas não necessariamente compartilhado. O universal exige que participemos de uma espécie de "nós originário" (Jean-Paul Doguet), um nós originário, anterior ao sujeito, anterior ao outro, um nós que ressente, "compreende" o outro, os outros como capaz de ressentir este universal, capaz de entrar em comunhão com a carne do mundo, capaz de tomar posse deixando-se possuir (en prendre possession tout en se laissant posséder).

Fred Forest, artista contemporâneo trabalhando com arte e tecnologia, assim se refere à estética

“Segundo a etimologia, o termo estética designa o conhecimento do “sensível”. Não se trata de dissertar longamente sobre uma categoria abstrata. A estética reivindica o projeto de apreender aquilo que constitui, para uma sociedade dada, a um momento dado de sua própria história, (...), o mundo que lhe é sensível. 2

 

          Alguns pensadores ainda persistem em considerar a sentimentalidade uma faculdade menor depreciando-a, insistem em considerar o desejo de encontro, a necessidade de intimidade, uma forte capacidade de povos (ditos) sub-desenvolvidos. Refiro-me a uma faceta da brasilidade (herdada dos portugueses, dos índios, ou dos negros? Felizmente herdada e ancorada nas raízes brasileiras) que quer sentimentalidade, que necessita intimidade.

          Performance: mise en scène dos instintos, deixar-se invadir por nossos corpos próprios e deixar-se possuir. "Beijem-nos! Beijem-nos antes que o substrato de nossas ações se torne figura de retórica", clamava o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos.  Brasileiros somos e desejo de encontro. A faculdade da razão pura se esgotou. Aqui, talvez, ela nunca tenha realmente existido.

Nossa investigação sobre a possibilidade de um corpo informático, a possibilidade de um corpo-carne numérico, só pode acontecer em grupo, no seio de um grupo que se queira nós, um nós originário onde não há anterioridade do sujeito em relação ao outro, onde o outro não é segundo em relação a mim, onde o outro é reconhecido como capaz de "compartilhar" o prazer sentido frente ao belo ou ao feio, belo-feio capaz de dar prazer ou desprazer. O nós deseja o outro, e si-mesmo, capazes de secreções e contaminações. E é somente em um nós, e no nó, que estes contágios, são capazes de gerar heterogeneidade, pluralidade, e desterritorializando o eu arraigado, gerar prazer ou desprazer; fazendo brotar arte. Este nós pode abraçar "uma sociedade dada, a um momento dado de sua própria história."

A performance, em geral, se dá no vivo, em tempo real. Com a tecnologia do vídeo esboçou-se a possibilidade dela dar-se, apenas, ao vivo, mediada. Pensamos em Vito Acconci, entre outros. Na vídeo-performance, o espectador (spectatore) não pode tornar-se co-autor, nem parte da obra. Aqui ele é levado ao desejo frustrado de presença, aqui ele é reduzido a ser, com todas as implicações psicanalíticas deste persona. A tecnologia de tele-conferência, softwares que transmitem em "tempo real", principalmente, imagem e texto, permite uma maior participação do público. Aí todos são  criadores e, ao mesmo tempo, voyeurs: artista, artistas, e indivíduos isolados ligados à rede. Lembremos, pois nunca será por demais dito, que a rede internacional dita de comunicações, é muito mais rede de informações, já que a comunicação exige interatividade. Todos os sites comerciais, sites sobre museus e galerias, sites sobre universidades, sobre cidades, países, sobre clima, sobre certas vegetações, revistas na internet… ainda que se queiram interativos, não são mais que sites de informação, estando a interatividade reduzida às possibilidades de caminhos a percorrer. (A interatividade permanecerá, por enquanto, um  texto a escrever.) O diálogo é interativo; o dito, a resposta, o inesperado, modificam o que está por dizer, o que não será nunca dito. A isto chamamos comunicação. Toda informação está previamente formada (in-forma) é enunciado constatativo, e não se redimensiona para se abrir à comunicação. A televisão, por ser unilateral, é apenas capaz de informação: transmitir mensagens in-forma e de (in)formar. De-formar, re-formar são eventos constantes da comunicação.

            O encontro na performance em telepresença é possível, apesar da rudeza da tela, da diagramação, do "espaço" (softwares de tele-conferência) gerado por outros, espaço por nada artísticos em seu aspecto formal. O encontro implica participação efetiva no nós originário, o encontro permite degustar, com todos os sentidos, a carne do outro, dos outros, do mundo, logo ele é capaz de aisthesis, capaz de arte.

Hoje, "metro, boulot, dodo" 4 et internet. Hoje, pouco encontro há. Sim, os jovens se encontram nos shoppings, ainda que Zigmut Bauman 5 acredite não haver encontro possível nestes espaços que chama, com Steven Flusty, de espaços de interdição, e de espaços de consumo. Centros comerciais são espaços inteiramente pensados, ordenados, onde as ações de seus frequentadores foram previamente estudadas. Mas Abraham Moles e Elizabeth Rohmer já haviam previnido que as praças, as antigas praças, não eram espaços públicos e, sim, espaços da polícia, organizados e vigiados. 6 Se hoje não há encontro, ou pouco encontro há, isto é devido à correria que o tempo, ou a falta de tempo, impõe; enormes distâncias, grandes engarrafamentos e/ou percursos intermináveis de metrô. Há pressa, me apresso. A rede de comunicações é, cada vez mais, espaço da polícia, no entanto, permite encontro, como em praças e centros comerciais.

O encontro virtual é confortável, pode se produzir a qualquer hora, no meio da insônia, nos dez minutos que sobraram entre uma atividade e outra, nas intermináveis horas solitárias das donas-de-casa, dos adolescentes abandonados em cidades desprovidas até de espaços da polícia. Com a televisão não mais somos uma sociedade de massa, massa de indivíduos mas, sim, massa de indivíduos isolados, indivíduos isolados assistindo aos mesmos programas de televisão, com alguma variação devido à prática do "zapping". Agora somos uma massa de internautas isolados, às vezes criando amizades impossíveis com pessoas que vivem do outro lado do mundo. E estas amizades saciam de certa forma: marcam-se encontros e menos tempo há para a casualidade de um encontro real se prolongar, pois "temos um encontro marcado na rede". Inúmeros são estes casos a nossa volta, e moramos no Brasil, onde uma pequeníssima minoria tem acesso à Internet. A massa de indivíduos isolados torna-se massa de indivíduos muito-mais-isolados. A massa de indivíduos isolados gerada pela televisão ainda conversa sobre um mesmo assunto, a novela de ontem, no Brasil. A massa de indivíduos muito-mais-isolados se encontra? Sim, claro, e contam seus encontros virtuais, e rapidamente se vão para seus compromissos virtuais. 

Paradoxalmente, o diálogo na Internet é entrecortado, o quotidiano parece arrancar o outro do espaço virtual. Ainda que desejo, ainda que prazer, ainda que encontro, a resposta à campanhia é física, imediata, automática, e rompe. Não há urgência na comunicação virtual: ninguém vai embora, ninguém vem, estamos lá-aqui sempre, pois aqui-aí não estamos. A comunicação evolui por síncopes… e grandes encontros. A teleperformance exige presença, e presença, por vezes, rude por causa da diferença de fusos horários. E' ainda o quotidiano que grita, que nos quer; o quotidiano, o palpável tem ciúmes da telepresença, ciúmes do virtual. No entanto, a telepresença se revela real, isto é quase-presença, quase-dotada do tocar.

Os indivíduos muito-mais-isolados que vivem a telepresença, permanecem frente aos seus computadores horas a fio. As imagens não são espetaculares, brilhantes, vivas, dinâmicas, "mais-que-reais", como as da televisão. Elas são, em geral, de baixa definição, sem contraste, quase imóveis. Não será, talvez, este lado "caseiro", incompleto, imperfeito, porém possível, destas imagens que gera o interesse em indivíduos acostumados ao bombardeio de imagens "mais-que-reais", mais belas que o real, vindas de locais inacessíveis?

"… apreender… o mundo que lhe é sensível", disse Fred Forest. O mundo é insensível às necessidades, desejos, ânsias de cada pequeno indivíduo, de muitíssimos indivíduos, senão quase todos. Ou ainda, os indivíduos apenas podem necessitar o que lhes é inculcado, seus desejos se restringem ao que é vendido pela televisão (e pela Internet) –realmente vendidos ou subliminarmente vendidos-, seus anseios são saciados em eco-turismos intocáveis, viagens "culturais", academia, silicone nos seios e nádegas, cirurgia plástica ou em drogas –proibidas ou não-. A imagem de baixa definição, quase imóvel, fala ao indivíduo muito-mais-isolado, e permite resposta, comunicação, necessariamente bi-direcional, podendo ser multi-direcional.

Voltemos à Dufrenne, na performance em telepresença há contemplação de um ponto de vista pouco privilegiado (as câmeras de vídeo são extremamente redutoras), aí penetrar é impossível fisicamente, vagar é o que mais se faz (a comunicação dá-se por fragmentos – imagem e texto fragmentados), o ar sentido é o não-vivo, geralmente não há sol, nem pássaros, nem odores senão seus próprios, chegar à comunhão carnal com todas as zonas erógenas do sensível também não é possível realmente. No entanto, a performance em telepresença permite contemplação e comunicação, penetração no âmago do desejo do outro e no desejo que se revela em si. A telepresença permite vagar vagabundos ousados, pois na realidade pouco tempo resta para vagar. O frio, buzinas e fedores são esquecidos em prol da comunhão virtual.

O brasileiro não suporta as distâncias… a distância gera desejo de encontro, encontro capaz de prazer estético.

Ainda que o corpo informático, ainda que o corpo numérico seja uma imposibilidade, ou uma "incompossibilidade" (Deleuze), ele é capaz de quase-performance, capaz de comunicação de afecto, capaz de revelar ressonâncias do inarticulado (Wittgenstein). O corpo informático degusta, e é degustado, com "a maior parte dos sentidos, que são solidários entre eles" (Dufrenne).

Artista, obra, público são elementos estéticos da Performance. O quarto elemento estético é o tempo. A performance artística se dá no tempo, sua efemeridade é condição. Os registros permanecerão registros, e, por permanecerem, estarão semi-mortos, ainda que capazes de leves ressonâncias. Os registros são apenas obscuro reflexo, eco ensurdecido de um prazer para sempre estancado.

"A arte conserva, e é a única coisa no mundo que se conserva. Ela conserva em si (quid juris?), ainda que, de fato, ela não dure mais que seu suporte e seus materiais (quid facti?),…

Aquilo que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de afectos e perceptos." 7

No fim, de fato, a performance estará irremediavelmente finda. Conservar-se-á a lembrança do hálito da carne do nós originário. A saudade faz mal e… desejo de teleperformance.

 

Notas

1. DUFRENNE, Mikel. Esthétique et Philosophie, volume II, "Introduction", ed. Klincksieck, Paris, 1976, p. 15 e 16. Traduzido por nós-mesmos.

2. FOREST, Fred, "Pour qui sonne le glas ou les impostures de l'art contemporain", in QUADERNI, n° 21, outono 1993, ps. 119 à 140, p.128. Traduzido por nós-mesmos. Grifo do autor.

3. Titãs. Arnaldo Antunes e Tony Belloto. "Família", in Titãs acústico, MTV, 1997.

4. "metro-boulot-dodo", expressão francêsa que poderia ser traduzida por "metrô-trampo-cama", significando que pouco tempo resta aos trabalhadores urbanos para "diversão e arte" (Titãs).

5. BAUMAN, Zigmut, Le coût humain de la mondialisation, ed. Hachette, trad. por A.Abensour, Paris, 1999.

6. MOLES, Abraham e Rohmer, Elizabeth, Théorie des actes, ed. Casterman, Bélgica, 1977.

7. DELEUZE e GUATTARI, Qu'est-ce que la philosophie?, ed. Minuit, 1991, p. 154.