Que corpo é este?
"Só
a mordida, que ignora a cor da pele, e o sangue humano, quente e arcaico,
bordando os contornos labiais, podem, ainda, fundar o indizível”. [i]
O bombardeio de informações e de signos que nós
sofremos hoje, não é o resultado de uma ideologia, nem de uma pesquisa
desenvolvida a partir de insatisfações. Ao contrário, ela cria insatisfações e
depressões. Sofremos um bombardeio, de fora para dentro, dentro da consciência,
sem possibilidade de defesa ou recurso. Estes signos estão longe de um real -
do meu real- impondo um ideal, irreal. Eles são a afirmação de uma realidade
construída artificialmente, uma realidade que deforma o real, o sentido do
real, o sentido dos objetos, das palavras; uma realidade que deforma nossos
corpos e nadifica nossas consciências. [ii]
Que corpo é este? Que corpo é este, torto, troncho,
atrofiado, disforme e deformado? Este que tanto interessa à arte, este que
choca, que dói, que traz desgosto, mal-estar, repulsa e que tanto se revela, se
desvenda e se desnuda na arte contemporânea... Este corpo é o meu corpo. Meu
corpo real, vital e mortal. Ele mesmo, este que mal respira por causa do
cigarro, este que cai de bêbado por se negar, este que deprime, este que não se
deseja nem deseja ser objeto de desejo, este corpo gordo, flácido, envelhecido,
de cabelos desgrenhados, as pernas tortas que rangem, as unhas curtas e roídas,
os dentes amarelados e mal dispostos na boca, o barrigão, este corpo é o meu
corpo real e a minha impotência e a minha ignorância. Sim, sei das minha
deformidades, o espelho é "imagem especular", "duplo
absoluto" onde "tipo e ocorrência coincidem", o espelho não
mente, nele confiamos, diria Umberto Eco. [iii]
No espelho me vejo e me odeio.
Eu e meu corpo somos qualquer um e todo mundo, eu e meu corpo e nós e nós todos não servimos para vender nada, não somos nada de tudo aquilo que vemos na televisão, no cinema nas revistas, nos cartazes publicitários.
Estas imagens pululam, invadem, esbanjam saúde e imortalidade,
estão por toda parte e tornam-se parte do que creio existir e que o espelho
arranca, deixando a ferida exposta: eu, ser a-normal, de-formada, mal-humorada,
estressada e infelizmente real.
Não sou capa de revista, sou caixa de super-mercado; moro em Ceilândia (DF), Brasil; meu vizinho tem paralisia infantil; minha tia está numa cadeira de rodas há 8 anos; meu irmão perdeu os dedos na serralheria; o filho do dono da padaria é cego; do outro lado da rua mora uma família de mendigos a céu aberto, tem um menino de cerca de três anos e mãe está grávida, faz 13 graus à noite. Apareci na televisão uma vez, lá atrás, disseram. Foi quando fui ver um atropelamento múltiplo que houve na beira da estrada. Nós, nós somos reais.
Depois de nunca ter atingido o ideal de beleza que me
impuseram, apodrecerei sob o solo e serei esquecida. Marylin Monroe continua
viva.
Fred Astaire nunca deixará de
dançar. Quando estamos olhando, "no céu", uma estrela, provavelmente,
ela não existe mais, eu existo. Todas as estrelas se parecem muito entre si.
Nós, população de sem nomes, somos diversos, os atores são todos iguais.
Existem raríssimas exceções: Jô Soares [iv] é
gordo, mas além de entrevistador ele começou, e permanece, como um cômico, e
nesta condição, e só nesta condição, ele pode ser gordo: rir e fazer rir de sua
deformidade.
Eu
sou real, não sou ideal e não consigo construí-lo. Não sou Jeff Koons nem Ilona
Cicciolina. Não tenho músculos, não mato gente segurando a arma com uma mão só,
não tenho silicone nos seios, nem na bunda, não fiz plástica nem lipoaspiração,
e não tenho tempo para "malhar". Estou consciente que devo consumir
estes homens e mulheres que me olham com desejo, no entanto, nunca pude ir com
eles além da masturbação, ainda que intensa. Ficam, ao final, as fotos
espalhadas e os vídeos por rebobinar.
Não acredito que mostrando a deformidade a arte procure o inusual. Ela escancara o real, isto é, o que sou. Meu extraordinário corpo vive, respira e sente a morte se aproximar. Raquel Welch rejuvenesce. Com muita sorte, se eu realmente me abolir, como é desejado, algum artista poderá usar meu cadáver de indigente para fazer arte e, assim, me eternizarei (Joel-Peter Witkin).
A arte é apenas um grito abafado no ensurdecedor
barulho da televisão e da publicidade. A publicidade admite, aliena, alimenta, anuncia,
assegura, atrofia, banaliza, cala, calça, coloniza, colore, condiciona,
confirma, constrange, cristaliza, cura, define, denuncia, difunde, dispõe,
dissimula, diz, dobra, dociliza, droga, embeleza, embriaga, engana, erotiza,
esclerosa, esconde, escreve, esquece, estimula, exclui, fala, festeja, filtra,
gasta, generaliza, gera, homoge neiza, impede, imita, impede, impõe, indica,
infringe, inova, interessa, inclui, isola, legitima, limita, louva, maqueia,
mascara, materialisa, mente, nada, naturaliza, nauseia, necrosa, nega, obriga,
oprime, pensa, penteia, propõe, publica, petrifica, putrefaz, puxa, quer,
quita, quotiza, reage, reclama, regula, reprime, reproduz, ri, sorri, sugere,
traça, transcreve, une, unifica, uniformiza, veste, viola, vitaliza, vitima,
vive, voga, volatiliza, volteia, vomita, vota, vulgariza, xinga, zabumba,
zanga, zela, zera, zomba, zune, e zurra.
Eu sou o sensível, eu sou a negação mesma do que me
fazem crer, e creio, que devo ser. Meu corpo que não se sujeitou à mutilação
carnal para tornar-se belo - o belo estabelecido- é uma imagem em negativo da
toda-poderosa tecno-ciência, diria Jean François Lyotard. [v]
Eu, ser eliminado, eu mutilada, eu-Witkin, eu-Rudolf
Schwarzkoger, eu-Jak e Dinos Chapman, eu-Zhu Yu, eu-Sun Yuan, eu-Georges
Bataille, eu-Marques de Sade, venho afirmar que eu sou o real. A arte que
apresenta o horror apresenta o meu desepêro.[vi]
O crescente interesse da arte pelo corpo extraordinário, pela deformidade, pelo que aqui afirmo ser o real, em detrimento do "real" imposto nos leva diretamente, de volta, à Adorno e Horkheimer em "La dialectique de la raison", à Marcuse em "La dimension esthétique", à Mikel Dufrenne em "Art et politique", à Roland Barthes em "Mythologies". Nos anos 80 muito trabalhamos estes autores que nos alertavam contra a classe e a sociedade dominantes, que nos falavam do príncipio de realidade estabelecido, da ordem estabelecida (Dufrenne), da ideologia dominante, dos mitos que perpetuam o sistema (Barthes), de espírito reificado, da Razão pura (Adorno e Horkheimer), da razão planificadora, do mecanismo social, da indústria cultural... Hoje sabemos que não há verdadeiramente planificação ou unicidade nas ações das agências de publicidade, fortes formadoras de opinião, nem nas ações das indústrias culturais e, muito menos, nas indústrias em geral; hoje sabemos que, também a classe dominante é dominada pela mídia, não uma mídia direcionada, mas, ao contrário, mídias vorazes e absolutamente sem controle. As únicas regras são vender mais que os concorrentes, obter uma melhor "performance" dos indivíduos, das empresas, das máquinas, e para tal não há ideologia, nem sistema organizado.
"A verdade da arte reside neste poder de romper o
monopólio da realidade estabelecida (isto é daqueles que a estabeleceram) para definir
aquilo que é real. ... "A Arte endereça seu desafio ao monopólio
que a sociedade estabelecida se atribui de determinar aquilo que é
"real"...
"Assim a transformação estética se torna uma denúncia
("mise en accusation") - mas ela é também celebração daquilo que
resiste à injustiça e ao terror, e daquilo que pode ainda ser salvo."
Marcuse [vii]
"A
unidade da coletividade manipulada repousa sobre a negação do indivíduo. ...
"A
indústria cultural não cessa de frustrar seus consumidores daquilo mesmo que
ela lhes prometeu”. Adorno e Horkheimer [viii]
"Adorno
não diz que o indivíduo está totalmente liquidado, ele "está somente
mutilado”.Jimenez [ix]
"O ser individual se aboliu”. Baudrillard [x]
Segundo Marcuse, e segundo Leo Lowenthal, citado por
Marcuse, seria necessário criar uma arte mais real, isto é, "criar um
mundo fictício que fosse mais real que a realidade ela-mesma”. [xi] E
é exatamente isto que a arte que apresenta o horror vem fazendo, pois este mundo
fictício, este mais real do que a realidade ela-mesma, sou eu, eu que não
existo, que fui "reduzida ao silêncio" [xii],
eu que não correspondo aos padrões estabelecidos, que não circulo na mídia, eu
frustrada pela impossibilidade de atingir o que a "mídia me prometeu”. [xiii]
O que estou afirmando é que o real, que deveria
ser definido pela verdade da arte, segundo Marcuse, sou eu. Que hoje em
dia o terror não mais se vê, se compreende como a produção da indústria
cultural, o terror é o me foi legado ser. Sou o indivíduo negado, logo, a
injustiça. Sou o mutilado, meu ser se aboliu.
Nossa "realidade": irrealidade. Prefiro chamá-la de efficaci(r)realidade; eficaz realidade, eficácia irreal.
O corpo, carregado de conotações, está sempre presente
na publicidade, mas, aí, ele não é corpo vivo e contraditório. Ele, aí, não é
mais o lugar da "verdade subversiva do desejo”. [xiv]
O corpo, veiculado pelos meios de comunicação de massa, pela publicidade, pela
televisão é um corpo "erotizado", esvaziado do desejo. Que desejo?
A massa não mais existe, somos uma infinitude de indivíduos extremamente solitários diante de nossos televisores e computadores. O corpo na publicidade não é nem carne, nem sexo, mas objeto transformado em signo com uma função de troca. O ser real está despossuído de seu corpo "orgânico" e obcecado pela higiene e assépsia. Corpo-objeto, objeto de culto a ser tratado, corrigido, manipulado, e oferecido como mercadoria.
E ainda, "O LUGAR das tecnologias de ponta é... o corpo
animal do homem..." [xv]
O LUGAR das tecnologias é o corpo animal da mulher. O
corpo feminino é o alvo, o corpo animal da mulher é o lugar da completa
manipulação, desrespeito, invasão, estupro. [xvi]
E, neste processo, o resultado é uma evacuação do feminino. O corpo feminino,
manipulado pela publicidade, nos converte em "objeto de desejo".
Nossos corpos de "noiva, despidos por nossos celibatários, mesmo"
(Marcel Duchamp), desgostam. Arte que apresenta o horror me traz deformada para
frente das câmeras e regojizo.
Post-scriptum: Será que com a Internet, com a tele-presença, eu, sujeito abolido e mutilado, poderei encontrar outros seres isolados e depressivos diante de seus televisores e computadores, será que conseguirei me comunicar, me expressar, se alguma expressão me resta e, enfim, tornar-me um pouco menos repugnante?
[i] MEDEIROS, Maria Beatriz de, O artsta plástico,
sujeito e objeto da arte, Tese de Doutorado, Universidade Paris I -
Sorbonne, 1989.
[ii] Sobre a consciência, a consciência, não só
manipulada, mas construída pela mídia, ver os trabalhos do filósofo francês
Bernard Stiègler.
[iii] ECO, Umberto. Kant et l'ornithorynque,
capítulos "Sur les miroirs" e "Chaînes de mirroirs et
télévision”, p. 371 à 385. Traduzido por nós-mesmos.
[iv] Jô Soares é um comediante, entrevistador e escritor
brasileiro, atualmente trabalhando para a rede Globo de televisão.
[v] Gualandi, Alberto, Lyotard,
ed. Les belles lettres, col. "Figures du savoir", Paris, 1999.
[vi] Outros artistas, partindo do estudo de corpos
deformados por doenças vêm encontrando movimentos novos, citaria aqui, Cláudio
Lacerda, excelente dançarino e coreógrafo pernambucano.
[vii] Marcuse, Herbert, La dimension esthétique. Pour
une critique de l'esthétique marxiste, Ed. Seuil, Paris, 1977, p. 23, 35 e 57.
[viii] Adorno, Théodor e Horkheimer, Max, La
dialectique de la raison, Ed. Gallimard,
TEL , Paris, 1974 (1944), p. 95 e 148.
[ix] Jimenez, Marc, Adorno et la modernité. Vers une esthétique négative, Le Sycomore, Paris,
1983. p. 131
[x] Baudrillard, La société de
consommation, Idées/Gallimard, Paris, 1970, p. 309.
[xi] Marcuse, idem, p. 57
[xii] Adorno e Horkheimer, idem, p. 137.
[xiii] Idem, p.
148.
[xiv] Baudrillard, Jean. idem, p.
213.
[xv] VIRILIO, Paul. "Le privilège de l'œil",
in QUADERNI. La revue de la commnication, no 21, outono 93.
Ed. Universidade Paris I, Sorbonne, pp. 75 a 87, p. 85.
[xvi] Citaria aqui o excelente trabalho do grupo EmmaGenics e o projeto subRosa, "a cyberfeminist art production and research, that questio and challenge the authority and the biotech
industry..." Catálogo do evento
"Intermediale. Performance-Theater im Zeitalter der Medien", Mainz,
Alemanha, 2001, ocorrido durante o congresso "Performance Studies
Internacional (PSi 7)".