Performance em telepresença.

Informação e comunicação na rede mundial de computadores.

Maria Beatriz de Medeiros

 

Par l'espace, l'univers me comprend (sentido I) et m'engloutit; par la pensée, je le comprends (sentido II). Pascal.  …sentido I – abraçar o conjunto; englobar; …sentido II – apreender pelo conhecimento, decifrar, aprender, conhecer, perceber, sentir…

Dicionário Petit Robert 1

Denominamos telepresença, presença em tempo real, ou quase real, mediada pela tecnologia, seja ela vídeo, ou computador. Em nosso trabalho atual, o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos realiza pesquisa em Performance Art em telepresença através do computador, isto é, na Internet. [1]

Quais as possibilidades de se fazer arte na rede mundial de computadores? Quando a rede é rede de informações? O que é informação? Quando a rede é rede de comunicações? O que é comunicação? A presença em telepresença é capaz de Arte? Qual a possibilidade de se fazer Performance Art em telepresença?

 

            Arte, comunicação de afecto

 

A arte é linguagem, no entanto, linguagem não codificável, linguagem imcompatível com palavras, linguagem irredutível. As linguagens têem por função a comunicação [2]. A arte é comunicação não lingüistica.[3] Para Kant, o belo dá prazer sem conceitos. Nós diríamos que a arte é comunicação através de uma linguagem sem conceito, proporcionando prazer ou desprazer. O próprio da arte é produzir afectos e perceptos, diriam Deleuze e Guattari. A arte é comunicação, sem conceito, através do afecto, sendo a causa deste afecto inexplicável. Na comunicação de afecto não se distingue precisamente a causa deste afecto, e seu efeito não é limitado.

 

Como estamos utilizando a língua portuguêsa (ou partindo dela para este texto traduzido para o inglês) cabe lembrar que o afecto pouco significa afeto (carinho, paixão). Referimo-nos ao afecto filosófico "que consiste em sofrer uma ação ou em ser influenciado ou modificado por ela." [4] Para Aristóteles, o afecto seria qualquer modificação sofrida pela alma, o afecto seria produzido pelas qualidades sensíveis e aconteceria na alma. O afecto

           

"… não tem necessariamente conotação emotiva" … "O termo afecção"… deve considerar-se extensivo a toda determinação, inclusive cognoscitiva, que apresente caráter de passividade ou que possa de qualquer modo ser considerada uma qualidade ou alteração sofrida." [5]

 

O meio utilizado para produzir arte independe do afecto produzido. Qualquer meio técnico pode produzir arte, se produzir afecto e percepto. Logo a rede mundial de computadores e a Internet são capazes de arte. Pesquisamos, no momento, duas formas artísticas na rede: a web-arte (ver.corpos.org) e a performance em telepresença. Outras reflexões sobre estas práticas do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos estão publicadas em www.corpos.org/papers , principalmente no texto "Atualizações do homem".

 

As diferentes compreensões do termo Performance

 

            A Performance Art é uma das linguagens da arte (talvez a mais não linguistica), ela é arte ao vivo, a arte da presença por excelência. Seu produto é processo e seu processo é efêmero, em princípio. O corpo é sujeito e objeto da "obra" de arte, mas todos os recursos e técnicas são simpáticos a esta arte multi- e trans-disciplinar.

            Para John Langshaw Austin (1911-1960), filósofo da linguagem, inglês, a informação é um enunciado constativo, aquele que descreve um evento, por oposição a um enunciado performativo, "que tem a propriedade de possuir um sentido intrínsico que não se deixa compreender independentemente de uma certa ação que ele permite realizar." [6]

            Assim poderíamos dizer que a arte é comunicação, comunicação de afecto, comunicação através de enunciados performativos (não enunciáveis). Aqui, longe estamos da idéia de performance e de performatividade com o sentido de eficiência mesurável por uma relação de in-put/output, na busca de uma otimização da produção, do rendimento. Aqui, a performance é resultado direto de uma causa específica, conhecida, que possui um efeito, ambos mesuráveis e passíveis de previsão.

 

            Interlocução

 

A comunicação gera, e é gerada pela, inteligência.

-          Interlligere- ler dentro, leitura interior.

-          A inteligência, em grego noésis, é plena de diálogo, conhecimento discursivo (diríamos, conhecimento, pura e simplesmente, já que o conhecimento discursivo é sempre conhecimento sensitivo, intuitivo, transpassado pela imaginário, e pleno de psiquismo).

-          dianóia; nóia, isto é, nós.

-          A inteligência é fruto do ser como um todo e com o todo, não havendo hierarquia nestes estados (na realidade um só estado) do ser.

-          O pensar, diálogo interior, também envolve todos os sentidos, o corpo todo, e o todo do corpo social.

A comunicação que é gerada pela inteligência e gera inteligência, dá-se na interlocução: subjetividades dando-se à leitura interna recíproca. A comunicação exige reconhecimento de si no outro, reconhecimento do outro como um igual, ela é própria ao "nós originário" de Jean-Paul Doguet [7], onde o eu e o tu, seio de um nós, são reconhecidos como capazes de compartilhar o prazer sentido frente ao belo, belo capaz de dar prazer, universalmente –de um universalmente simbólico (Gérard Lebrun), sem conceito. A comunicação exige compartilhar com o outro, isto é, exige abertura, penetrabilidade e contaminações (sic). A comunicação existe quando ocorrem ações, ações nos interlocutores. A arte existe a partir do momento em que ocorre afecto no espectador. Na Performance Art, o afecto ressentido dá espaço à participação, gerando afecto no performer, logo, interlocução, interlocução com causa inexplicável e sem conceito. Assim, na comunicação, como na arte, a performance, não mesurável ou previsível, dá-se nos interlocutores. Ou ainda, haverá comunicação enquanto houver performance entre e nos interlocutores. A rede mundial de computadores, através da telepresença, pode ser rede mundial de comunicação.

 

A rede mundial de informações

 

A palavra "cibernética", para o professor de matemática do Massachusets Institut of Technology, e um dos fundadores das tecnologias da informação, Norbert Weiner, designa "o estudo das comunicações que exercem controle efetivo, com vistas à construção da máquinas calculadoras". [8] Estas máquinas calculadoras são, hoje, os computadores e os autômatos que, além de realizarem operações, permitem um feedback do ser humano, sendo denominadas  máquinas inteligentes. Máquinas que recebem mensagens, isto é, informações, informações codificáveis, transmissíveis e decodificáveis. Na decodificação, dados anteriormente armazenados são modificados e geram, muitas vezes, novas mensagens codificáveis, transmissíveis e decodificáveis.

            Apartir do explanado poderíamos dizer que existe troca de informações entre o ser humano e a máquina ou entre duas máquinas, e ainda, que esta troca de informações, este intercâmbio, é capaz de gerar novidade.

            Lembremos que, uma informação possui impacto, apenas, quando é novidade. Na teoria da informação, dir-se-ia que uma informação possui a função inversa de sua freqüência. Uma informação repetida, já nada mais informa, deixando mesmo de ser informação.

A rede mundial de computadores é um meio de comunicação, no entanto, ela é sobretudo, meio de informação. [9] Uma informação é um enunciado constativo (Austin), que provoca uma redução de incerteza acerca de um ambiente qualquer, ela é (pretende ser) uma certeza e portanto não requer compartilhar. Ela é "comunicação" em sentido único. A comunicação é necessariamente uma via de, no mínimo, duas mãos. Jamais haverá comunicação quando o que se buscar for o "controle efetivo"!

             Na interlocução, a informação gera novidade, modificação. Por exemplo, se informo alguém que vai chover, este alguém, não só armazenará esta informação, como também, talvez, a partir do armazenado, este alguém modificará todo o seu dia. Se informo, este alguém, que 200.000 pessoas morreram, em algum lugar, ontem, provavelmente, esta informação gerará um novo estado de espírito no meu interlocutor (afecto). E ainda, se informo que um ente querido faleceu (afecto), esta informação poderá modificar radicalmente a vida da pessoa informada. Ressaltemos que a afectação, gerada pela informação, não representa um convite ao diálogo, já que esta última é fechada e conclusiva: "200.000 pessoas morreram", "aquela pessoa morreu". A troca de informações entre seres humanos e máquinas e as subsequentes trocas de informações entre máquinas também podem gerar catástrofes. Assim os vírus chegam a destruir todas as informações de uma, ou muitas, máquinas. Diferentemente da troca de informações entre seres humanos, esta aniquilação não gerará afecto, pois, embora haja decodificação, e por vezes catástrofe, não há compreensão. Na interlocução, na comunicação, há interação, desejo e necessidade de participação, de performance; há compartilhar e, ainda, responsabilidade. Em francês, para compartilhar, diríamos, "partager", fazer – ser parte ("part").

Compreender, poderia nos levar à diversos pensadores. Citemos Wilhem Dilthey (1833-1911), onde "o compreender é a descoberta do eu no tu" [10]… onde compreender é conhecimento interpessoal não suscetível de explicação causal. Este filófoso alemão, sustentou que o estudo das ciências humanas envolve a interação da experiência pessoal; o entendimento reflexivo da experiência; e uma expressão do espírito em gestual, palavras, e arte.

Como vimos, a informação forte gera necessidade de redefinição, no entanto ela não quebra o consenso. Ela estabelece (impõe) um novo, que se quer definitivo. Enquanto a informação for capaz de impacto, ela gerará modificação no sujeito, no entanto, permanecendo, a informação, intacta. A comunicação se dará enquanto nenhum consenso for estabelecido, enquanto nenhuma regra se estabilizar, enquanto houver possibilidade de tato, de afecto e percepto, em todos os interlocutores envolvidos.

Estamos em constante modificação no caudaloso e atormentado mar de informações no qual vivemos. A Internet, pode ser lugar de comunicação, mas ela é sobretudo lugar da informação, onde não há possibilidade de resposta, de interação, de interlocução. A escolha entre possibilidades previamente definidas não representa comunicação. O mero escolher caminhos, apertar botões -diz-se "navegar"- não implica comunicação. Na interlocução e na Performance Art em telepresença, a World Wide Web e a Internet, tornam-se rede de comunicações.

A informação, a redução de incerteza acerca de um ambiente dado, IN-FORMA, dá forma definida ao que antes era disforme, fluido, aberto. A informação é forma moldada. A comunicação esculpe, sem necessariamente, concluir nenhuma obra. Se, ao final de uma comunicação, chegamos a um consenso, temos uma certeza, esta poderá passar a ser informação. O consenso, o fim da comunicação, a extinção da possibilidade de performance, seria como uma matriz, um molde, uma forma negativa, da qual criar-se-ia formas positivas, isto é, informações. Novas à princípio, sem valor ao final.

Na comunicação não há consenso, há, sim, a possibilidade de performance no(s) outro(s) e em si mesmo.

No entanto devemos acrescentar que o consenso, o acordo, é um horizonte inatingível. Todos os consensos são locais e momentâneos, frágeis e fugidios. Informações são, também, circunscritas, efêmeras, e, não raras vezes, falsas.

            A rede mundial de computadores é, principalmente, rede de informações: informações codificáveis, capazes de gerar e controlar máquinas, mas também informações comerciais, educacionais, metereológicas, informações verificáveis, controláveis… Como meio de expressão artística a rede pode vir a ser espaço da arte, como web-arte, isto é, como meio de expressão artística, logo capaz de gerar affecto. Com a telepresença, esta rede se torna efetivamente rede de comunicações, espaço da interlocução, lugar (não-lugar) – topos e utopia- da performance, já que a performance nos interlocutores é condição sine qua non para a comunicação efetiva, e ainda, lugar (não-lugar) – topos e utopia- da arte da performance, comunicação intersubjetiva de affecto.

 

Bibliografia resumida

Abbagnano, Nicola, Dicionário de Filosofia, trad. Alfredo Bosi, 2° ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998.

Deleuze, G., e Guattari, F. Qu'est-ce que la Philosophie?, Paris: ed. Minuit, 1991.

Doguet, Jean-Paul, "Je, tu, nous. Contribution à une philosophie de l'interlocution", revista Les Papiers, n° 48, Collège International de Philosophie, Paris, julho 1999.

Ducrot, O., Todorov, T., Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du Langage, Paris: ed. Seuil, 1972

Franco, Marcelo Araújo, Ensaio sobre as tecnologias digitais da inteligência, Campinas, SP, Papirus, 1997.

Kant, Emanuel, Critique de la Faculté de Juger, trad. A. Philonenko, Paris: ed. Vrin, 1984.

Kunzmann, P., Burkard, F.-P., Wiedmann, F., Atlas de Philosophie, Paris: ed. La Pochotèque, Le Livre de Poche, 1993.

Lyotard, Jean François, La condition Post-moderne, Paris: ed. Minuit, 1979.

Medeiros, M. B. e Rocha, Carla, www.corpos.org

Medeiros, M.B., diversos textos em português, francês e inglês, www.corpos.org/papers

Prado, Plínio, Teoria do aspecto e a arte de julgar, notas de curso, Collège International de Philosophie, Paris, 1999.

Weiner, Norbert, Cibernética ou controle e comunicação no animal e na máquina, SP: Polígono e USP, 1970 (1947).



[1] A tecnologia empregada para a realização de performance em telepresença é a mesma utilizada para a realização de teleconferências. Nós a utilizamos com o objetivo de experimentar as possibilidades da Performance Art em telepresença.

[2] Lembremos que estamos falando de uma comunicação plena de aspecto, de inarticulado (Wittgenstein), de indizível (Barthes), e não da teoria alemã da pragmática comunicacional (o primeiro Habermas).

[3] No dicionário brasileiro "Novo dicionário Aurélio", encontramos como quinta definição de "linguagem" o que segue: "Tudo que serve para expressar idéias, sentimentos, modos de comportamento, etc. e que exclui o uso da linguagem."

[4] Abbagnano, Nicola, Dicionário de Filosofia, trad. Alfredo Bosi, 2° ed., São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 19.

[5] idem, p.21.

[6] Ducrot, O., Todorov, T., Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du Langage, Paris: ed. Seuil, 1972, p. 427,428. Lembremos, mais uma vez que ao tomarmos Austin não estamos nos aproximando da teoria de Habermas, e do conceito de speech act.

[7] Doguet, Jean-Paul, "Je, tu, nous. Contribution à une philosophie de l'interlocution", revista Les Papiers, n° 48, Collège International de Philosophie, Paris, julho 1999. "Par communication, elle (la troisième critique kantienne) entend le processus très inter-personnel permettant en fin de compte à la  communauté humaine de construir son humanité et de se appréhender comme un ensemble dont les membres se reconnaissent comme des hommes et comme des indivudus. Sans ce processus d'auto-construction dont la communication esthétique est constitutive, la diversité des sprits ne prendrait pas la forme d'une communauté… C'est ectte place de la communication qui fait la modernité de cette critique." P. 55.

[8] Weiner, Norbert, Cibernética ou controle e comunicação no animal e na máquina, SP: Polígono e USP, 1970 (1947).

[9] Quando a rede mundial de computadores se quer comercial, informar torna-se sinônimo de deformar, como em todo bom comercial; quando ela se quer educacional, ela veicula dados previamente coletados sobre os quais alguns temporariamente concordam.

[10] Kunzmann, P., Burkard, F.-P., Wiedmann, F., Atlas de Philosophie, Paris: ed. La Pochotèque, Le Livre de Poche, 1993, p. 181.