EDUCAÇÃO ESTÉTICA DA COMUNIDADE

PARA A ARTE CONTEMPORÂNEA

Bia Medeiros e

Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos

Existem espaços reservados à arte, como existem os espaços reservados aos loucos, aos velhos, aos doentes, às mulheres, às crianças…

"A prisão... A forma-prisão... Ela se constituiu fora do aparelho judiciário, quando se elaboraram, por todo o corpo social, os processos para repartir os indivíduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação, registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se centraliza." (1)

Quando os Impressionistas criam o Salão dos Independentes, de certa forma, eles fundam uma nova maneira do artista se colocar diante da sociedade. Optando por atingir o público, sem passar pelo crivo de instituições oficiais, eles afirmam sua liberdade diante destas. Movimentos artísticos imediatamente posteriores, se exprimiram por manifestos, manifestos que por um lado legitimam o trabalho do grupo e o reconhecem como tal, por outro lado formam o público.(2) As exposições passaram, também, a ser acompanhadas de discussões teóricas e outras publicações.

Com os Ready-mades de Marcel Duchamp, os artistas se tornaram, não somente criadores de imagens, catadores de objetos, e objetos de ações artísticas, mas tornaram-se mais conscientes do poder de questionamento da arte. Desenvolveu-se, então, uma atitude crítica, necessária e imprescindível, devendo esta conter uma análise dos meios utilizados, e uma relação responsável para com o público. O desenvolvimento histórico destas reflexões nos levam ao posicionamento que mais tarde virá a ser o de alguns artistas conceituais, que se querem críticos, cuja arte não se limita à produção de obras, devendo também construir a capacidade a reconhecer um trabalho como arte, isto é, criar a obra e formar o olhar do espectador. Emmanuel Kant foi o filósofo que exprimiu este pensar em sua Estética.

Os espaços nos quais são expostos e discutidos trabalhos artísticos, sejam eles espaços normalmente reservados à arte: espaços institucionais, convencionais, galerias, isto é, IN-SITU; ou não habitualmente reservados para este fim, não institucionais e/ou não convencionais, isto é, EX-SITU, não são nunca neutrosDiversos questionamentos podem derivar desta não neutralidade do espaço (e do tempo), porém fixem-nos nas questões relativas ao IN e EX-SITU. O espaço, o ambiente, onde é mostrada a obra é elemento modificador desta enquanto espaço que, estando ao redor, situa a mesma. Do todo apreendido pelo espectador, a obra de arte é fragmento, logo este todo constitui-se parte da especificidade de cada obra. Espaços reservados à arte são clausuras reais, além do enclausuramento simbólico. Apenas iniciados se sentem convidados ao IN-SITU, apenas iniciados ousam penetrá-los. O artista é assim frustrado de uma ressonância social.

Diversas circunstâncias levaram artistas a expor em espaços não, normalmente, reservados à arte. Podemos citar os projetos que não se adaptam às estruturas físicas de museus e galerias; os projetos que não se adaptam à ideologia destes espaços e os projetos que incomodam, voluntária ou involuntariamente, e não são aceitos. Assim procura-se deliberadamente espaços diferenciados baseados em necessidades físicas dos projetos e/ou em atitudes contestatórias. Muitos foram os museus e galerias recentemente reformados para poder conter projetos contemporâneos, novas estruturas arquitetônicas. No entanto, estes restam instrumentos da ideologia (3), e as obras aí presentes estão esvaziadas de quaisquer propostas perturbadoras, questionadoras ou contestatórias. A legitimização relativiza qualquer conteúdo, seja ele crítico ou não.

Existe ainda a prática alternativa, paralela à prática IN-SITU, trata-se de uma necessidade social, e certamente política, resultado de reflexões que levam a retornar à arte sua função junto à comunidade penetrando, com mais ou menos discreção, espaços inacessíveis à esta. Esta atitude é pejorativamente denominada, por alguns, sessenta e oitista. No extremo oposto, encontramos artistas que se voltam para si mesmos, se fecham em ambientes puramente acadêmicos, e ignoram (esquecem?) tanto uma análise crítica de conteúdo e de meios utilizados, quanto o poder de questionamento sócio-cultural e político, da linguagem artística. E, talvez, sobretudo, ignoram a comunidade mesma.

Evidentemente, não basta estar em locais não-reservados à arte para ser caracterizado como um trabalho EX-SITU. No dito Primeiro Mundo inúmeros projetos "EX-SITU" são financiados para a publicidade de marinas, de hotéis, para incentivar o turismo nesta ou naquela cidade... Por outro lado, até que ponto, um trabalho IN-SITU divulgado junto à comunidades não-iniciadas poderia tornar-se EX-SITU? Pensamos nos raros Museus que abrem suas portas até às 23 horas, e aos domingos e feriados para atingir diferentes públicos.

Afirmo que a arte está envolvida por um enclausuramento simbólico, além do enclausuramento físico do IN-SITU. Logo que declaro alguma coisa "obra de arte", independentemente do local onde esta se encontre, o espectador, seja ele iniciado ou não, será motivado a criar este enclausuramento e, consequentemente, a colocar o objeto artístico, seja ele qual fôr, em uma "redoma" imaginária, criando o imediato e definitivo distanciamento que impedirá qualquer possível perturbação (e até mesmo o êxtase?) do espectador. Então, para ser verdadeiramente EX-SITU o trabalho não deveria nem ser anunciado como arte!

Tirar a arte e a reflexão sobre esta, do espaço a ela destinado significa, de certa forma, a desfigurar, a desterritorializar. Por um lado, como disse inicialmente, o local onde está exposta a obra modifica-a e se torna parte da mesma. Este exercício exige, até certo ponto, adaptação do trabalho ao local escolhido. ("Até certo ponto" porque a prática pode também ser totalmente diferenciada segundo o espaço da instalação.) Por outro lado, o confronto inesperado com o público permite uma apreensão inédita da proposta. A manifestação artística EX-SITU provoca uma espera de compreensão, uma espera de satisfação, que, como bem afirmam Abraham Moles e Elizabeth Rohmer (4), aguçam a percepção, função do nível de atenção. Desterritorializada a obra burla o espectador e escamoteia seu enclausuramento simbólico.

Ao realizar um trabalho junto à um público não-iniciado fomenta-se mútuo processo de formação: por um lado o que denominamos educação estética da comunidade. Levando a pesquisa em artes para o seio do grande público instiga-se um questionamento estético, funda-se a capacidade crítica, e consequentemente desenvolve-se a percepção da comunidade. Por outro lado, o artista revê seu trabalho através das reações e análises efetuadas pelo público, o que permite enorme retôrno tanto teórico como prático. Retôrno reflexivo e incentivo à discussão crítica sobre o trabalho como um todo (seus objetivos, seus métodos) e sobre aquela atuação específica (este público específico, esta instalação) comparada com outras atuações. Elaboração de análises teóricas, estímulo a outras práticas. Pesquisa e retôrno à comunidade.

Alguns objetarão a impossibilidade de se realizar a educação estética de uma comunidade jamais informada, jamais motivada a se interessar por arte. Utopia. Sim, refiro-me a um trabalho "ou-topos", um trabalho em/com um não -lugar ( e sublinharei a ambiguidade). Refiro-me a centelhas de educação, resíduos de capacidade crítica. Não pretenderia fazer nascer artistas ou críticos de arte, mas apenas fundar a possibilidade de um olhar analítico no que diz respeito à imagens quotidianamente veiculadas por meios de comunicação, ditos, de massa; um olhar crítico sobre a realidade quotidiana.

Uma das linhas de pesquisa do Corpos Informáticos é a educação estética da comunidade. Para desenvolvimento desta o grupo realiza sistematicamente ações que visam levar o estágio da pesquisa à comunidade em geral. Nestes trabalhos, mostras de vídeos, instalações e vídeo-performances, a "visibilidade sem lacuna" é de tal forma extremada que a "forma-prisão" e o enclausuramento simbólico da arte são neutralisados: EX-SITU. O questionamento constante, por parte do público, revela o grande interesse. Seria pejorativo dizer a fome de arte? Constata-se o respeito físico e intelectual pelo trabalho. O contato direto permite a desmistificação tanto do trabalho quanto da figura do artista. "Ou-topos"? A frustração de uma ressonância social é aniquilada.

Educar é realizar a formação e o desenvolvimento do ser humano. Por "estética" entendemos um conhecimento sensível "o projeto de apreender aquilo que constitui, para uma sociedade dada, à um momento dado de sua própria história, (...), o mundo que lhe é sensível." (5) Ou ainda, "o sensível, o gôsto e o que é experimentado (goûté). Não há razão para delimitar o gôsto só ao bom gôsto, ao gôsto que julga as obras de arte. "Experimentar" (Goûter) é entrar em uma certa relação com o sensível..."(6) A educação estética é um processo de sensibilização do ser. Trata-se de permitir a formação de parâmetros através da experimentação de uma relação com o sensível. E, estando o IN-SITU irremediavelmente enclausurado, logo, esvaziado de sua capacidade crítica, o EX-SITU é a possibilidade de gerar a educação estética da comunidade.

(1) FOUCAULT, Michel, Vigiar e Punir, trad. L.M.P.Vassallo, Ed. Vozes, Petrópolis, 1977 (75), p. 207.

(2) Não ocasionalmente o termo "manifesto" envolve um duplo sentido. Por um lado, manifesto é uma declaração escrita e pública lançando um programa de governo, um movimento literário, um grupo ou indivíduo, por outro lado, é "manifesto", algo cuja existência é evidente.

(3) "Diz-se habitualmente: "ideologia dominante". Esta expressão é incongruente. Porque a ideologia é o que? É precisamente a idéia enquanto ela domina: a ideologia só pode ser dominante. Tanto é justo falar de "ideologia da classe dominante" porque existe uma classe dominada, tanto é inconsequente falar de "ideologia dominante", porque não existe ideologia dominada: do lado dos "dominados" não há nada, nenhuma ideologia, senão precisamente -e é o último grau de alienação- a ideologia que eles são obrigados (para simbolisar, logo para viver) de emprestar à classe que os domina". BARTHES, Roland, Le plaisir du texte, col. Points, Ed. du Seuil, Paris, 1973, 105 pp., p. 53 e 54.

(4) MOLES, Abraham A. e ROHMER, Elizabeth, Théorie de Acts. Vers un Écologie des actions, Ed. Casterman, Belgica, 1997.

(5) FOREST, Fred, "Pour qui sonne le glas, ou les impostures de l’art contemporain", in Quaderni, no 21, Paris, outono 1993, pp.119 à 140, p. 128.

(6) DUFRENNE, Mikel, Esthétique et Philosophie, tome II, ed. Klincksieck, 1976, p. 15