Performance em tele-presença. O corpo em telepresença

 

Maria Beatriz de Medeiros [1]

 

 

Introdução

 

O que discutiremos aqui é a possibilidade da comunicação em telepresença; a possibilidade do corpo ausente participar de uma comunicação efetiva, isto é, a capacidade de uma presença espectral ser parte de uma interlocução. E, sendo a Performance Art aquela que reclama para si a interação com o "espectador" (arte ao vivo verdadeiramente interativa com o espectador tornado criador da obra), a telepresença ser uma das linguagens da Performance Art.

 

A fala já é técnica. O grito, o grunhido, o choro também são linguagens. Porém a palavra, desde o controle das cordas vocais, passando pelo relacionar coisas e sons, os verbos, e a complexificação da linguagem, são a primeira técnica ou a técnica primeira. O corpo é o lugar desta técnica. Linguagem é técnica de comunicação. 

 

A arte é linguagem, no entanto, linguagem não codificável, linguagem incompatível com palavras, linguagem irredutível. As linguagens têm por função a comunicação [2]. A arte é comunicação não lingüística.[3] Para Kant, o belo dá prazer sem conceitos. Nós diríamos que a arte é comunicação através de uma linguagem sem conceito, proporcionando prazer ou desprazer. O próprio da arte é produzir afectos e perceptos, diriam Deleuze e Guattari. A arte é comunicação, sem conceito, através do afecto, sendo a causa deste afecto inexplicável. Na comunicação de afecto não se distingue precisamente a causa deste afecto, e seu efeito não é limitado.

 

O corpo busca o outro, o aconchega, o adverte do perigo: interação. O elemento possibilitador da subjetividade é o outro. Intersubjetividades aprofundam relações através da interlocução.

 

“O carinho é despertar para a intersubjetividade”. [4]

 

Muitos autores referem-se a o outro, ou ao encontro do outro. Nenhuma discordância foi assinalada no que se refere à intensidade do encontro com o outro, um outro ser humano, por oposição ao encontro com as coisas. Mikel Dufrenne fala de convite a uma resposta, convite a uma compreensão. Espera. Respeito pelo outro que nos ensina nossa própria interioridade. Jean-Paul Sartre nos fala do outro que nos torna objeto, feitiçaria. "O inferno são os outros." Christian Delacampagne vê no outro a ignorância, a impenetrabilidade. Não concordamos com Sartre, ao contrário, acreditamos que o outro é a única possibilidade de criação de subjetividade, já que é só com este - a quem respeito e dou direito à palavra - que se dá a interlocução.

 

Para prosseguirmos seria necessária uma ampla discussão sobre os conceitos de interatividade, interação, e interlocução. Mas, como aqui não queremos entrar nesta querela, nos limitaremos a assim definir estes termos nos comprometendo a tratar apronfundadamente deste problema em outro texto. Por interatividade entendemos atividade entre o homem e a máquina, e não ousaríamos utilizar o termo "diálogo". Em uma interação, um corpo exerce influência sobre um outro e modifica o comportamento deste último. Já na interlocução, há influência e modificação recíproca, há transformação e formação mútua no processo, e isto só é possível pelo compartilhar com um igual.

 

Para o filósofo Jean Paul DOGUET [5] "um interlocutor é um protagonista do processo de comunicação capaz de se inscrever explicitamente como uma parte direta. Não basta, então, transferir informação ("comunicar") para ser interlocutor", sendo necessário ao interlocutor ser autor consciente da palavra. A comunicação automática, ou a comunicação animal e mesmo as formas não voluntárias (indiretas) de comunicação não pertencem à interlocução.

 

 

O corpo presente

 

O corpo implica primeiramente consciência de si. Esta só se dá através do outro. O Outro, espelho distorcido e inalcansável, me torna sabedora de mim mesma. É através do outro que me conheço, me conheço como diferente e construo minha particularidade a partir desta diferença, me torno sujeito único, subjetividade tão lacrada em mim mesma quanto este outro. Desta solidão incomensurável de minha consciência espremida nas bordas de meu corpo advém a necessidade vital de comunicação. Grito para tocar este outro. Mônada (Leibniz)? Não, na mônada não cabe a comunicação. A comunicação é a possibilidade mesma da intersubjetividade, alimento, tanto de meu corpo, quanto única forma de construção do pensamento.

 

A presença é posta, não havendo outra alternativa, imposta e exposta, déspota e querida. Assim esgarçamos o sexo materno, escorrendo por líquidos espessos ainda quentes e nos defrontamos com a raiva de permanecer vivos, neste mundo áspero, expressa no choro primeiro. Assim nos amamentamos, no calor do colo, o cheiro azedo de leite humano, o bico do peito mais ou menos doador. O ar salgado, quente e úmido me indicando que deveria estar nos trópicos. O lençol frio e o corpo quente: presenças. O corpo presente e rapidamente a dor da ausência. Na presença, a comunicação - gestos, choros, gritos, e depois a fala- preenchendo esta lacuna do corpo colado, do leite tomado e do suor compartilhado. Na ausênica, lembranças terciárias [6], diria Stiegler, suprindo ou tentando suprir a comunicação ao vivo.

 

O corpo humano é carne e suas secreções, seus movimentos e lamentos, risos e acenos; o corpo humano é residência da subjetividade, e neste permaneço enclausurada.

 

Segundo Levinson, [7] comunicação e transporte coincidem, pois a comunicação exigiria presença. Mas os suportes terciários vêm, através da descorporificação mais ou menos aguda, permitir sustentar a lacuna da ausência do outro. No retrato de sua mãe, Roland Barthes tece longo desejo de presença, revelado e saciado na fotografia. A comunicação é impossível, já que só Barthes vê e "compartilha" com sua mãe seus pensamentos teóricos sobre a fotografia. Esta última permanece parte espectral, sem a palavra, da pretensa comunicação.

 

 

A televisão e outros objetos temporais

 

O rádio e a televisão foram chamados de meios de comunicação, no entanto, comunicação implica interação entre subjetividades. O rádio e a televisão são meios de informação. O telefone e a internet em tempo real (apenas texto – chats - e telepresença) permitem comunicação. Ambos exigem um parceiro e participação: fazer parte de forma ativa. Aqui, comunicação e transporte coincidem: via telefone há teletransporte da voz, via internet há teletransporte da imagem em movimento e da voz.

 

Umberto Eco, em Kant e o ornitorrinco, nos fala de próteses e espelhos. As próteses seriam extensivas (estendem nossos sentidos) e intrusivas (se intrometem em nossos corpos), mas também magnificativas (ampliam espaços minúsculos, reduzem espaços imensos) e eventualmente deformantes. Os espelhos seriam próteses que não enganam, imagem especular: um duplo absoluto, incapaz de mentir, sem valor indicial; imagem onde tipo e ocorrência coincidem.

 

"Assim, e sempre de um ponto de vista teórico, o que aparece na tela televisiva não é signo de algo: é imagem paraespecular, que é apreendida pelo observador com a fé que damos à imagem especular.

[...] Não desconfiamos da TV porque sabemos que, como cada próteses extensiva e intrusiva, em primeira instância não nos fornece signos, mas apenas estímulos perceptivos". [8]

 

Então, da confiança que temos no espelho - imagem especular -, resultaria uma confiança na televisão em geral, uma tendência a, entregues diante dela, subvalorizarmos as estratégicas interpretativas. Ressaltemos que Eco alerta estar trabalhando "de um ponto de vista teórico", no entanto, se levarmos em consideração a análise de Bernard Stiègler, veremos que também de um ponto de vista prático, a televisão exerce, de toda forma, esta capacidade de suprimir os possíveis julgamentos críticos, agora, não por ser imagem especular ou paraespecular, na qual confiamos, mas por trabalhar, como objeto temporal, em um fluxo que coincide com o fluxo da consciência.

 

"É assim que os mass media [9] se desenvolveram para captar e vender os tempos de consciências, explorando as virtudes específicas dos objetos audiovisuais enquanto estes são temporais.

[...] Esta coincidência do fluxo da consciência com aquele de seu objeto permite a adoção do tempo do objeto pelo tempo da consciência. A partir daí, esta consciência pode "viver" seu tempo por procuração, no tempo dos objetos difundidos pelas mídias de massa. Disto resulta que o tempo das consciências, que se sincronizam e se homogeneízam simultaneamente, se tornou a matéria-prima das indústrias da comunicação, pois aquilo que estas indústrias vendem não são programas, mas audiências para telas publicitárias. Os programas servem apenas para atrair as consciências a vender". [10]

 

Assim a televisão, mas também o cinema - que Eco afirma ser signo, do qual desconfiamos - e os vídeo-games, contribuiriam para "destruir o espírito". [11] Destruição do "tempo da consciência", e consequentemente do espírito, pela adoção do tempo do objeto temporal.

 

Ainda que os objetos temporais sejam formadores de consciência ou a consciência ela mesma, como quer Stiègler, eles não são capazes de comunicação. Eles são implantes, próteses intrusivas e constitutivas, incapazes de fundar a subjetividade pois não há interlocução. Daí, uma enormidade de sujeitos semi-incapazes de palavra, quase-incapazes de ser responsáveis por seus atos. Sujeitos constituídos, porém minados em suas habilidades para construir um pensamento pessoal, uma crítica, enfim, inaptos a ser responsável pelo seu próprio destino.

 

 

A telepresença

 

Alguns autores afirmam que um dos fatores que geram o desejo de telepresença advém do medo do mundo real. Um indivíduo pode ter medo do real, e este medo sempre existiu. No entanto, hoje, este medo se torna mais presente pelo fato de que ídolos e "estrelas", têm seus corpos esculpidos e/ou moldados, além de serem muitas vezes apresentados em revistas com "correções" realizadas diretamente sobre as fotografias. Estes seres inexistem, eles são verdadeiros não-lugares (Marc Augé). Muitos adolescentes, incapazes de serem como seus ídolos construídos, rejeitam-se e se fecham, se negam e se entregam à comunicação via computador. Esta comunicação, principalmente em telepresença, embora lenta e enevoada, é possibilidade de encontro com o outro que não está fisicamente presente, possibilidade de encontro e de comunicação, e não necessariamente apenas rejeição do real.

 

"Múltiplos fantasmas povoam o imaginário corporal. Como chegar a reconhecer seu corpo próprio no fluxo de imagens que exibem ou dissimulam os corpos, os fazem aparecer e desaparecer no jogo incessante da intimidade e do espetáculo? Tudo acontece como se nós tivessemos, incessantemente, que provar a existência real deste corpo que nós esperimentamos como nosso próprio corpo. … E' preciso se dar um corpo, ou simplesmente o designar como real por um ato – uma palavra – que lhe dá um segundo nascimento e o faz existir identificando-o e, poderíamos dizer, batizando-o." [12]

 

Bruno Huisman e François Ribes, no texto citado, absolutamente não pensam as novas tecnologias de informação e de comunicação. Eles referem-se ao corpo simbólico, ao corpo fantasmado. Mas poderíamos trazer facilmente suas considerações para esta reflexão: corpo presente, corpo ausente, corporificação, descorporificação. Múltiplos são os fantasmas que povoam o imaginário corporal. Esta afirmativa leva a corpos perfeitamente moldados com body buildings, esculpidos com cirurgias plásticas, silicones e lipoaspirações. Os fantasmas, atualmente criados pela indústria corporal, em nada se assemelham a nossos corpos naturalmente desajeitados. Como reconhecer meu corpo em um imaginário no qual não me identifico? O fluxo incessante de imagens, o bombardeio de imagens nem ao menos permite que haja estabilização de ídolos, ídolos que poderíamos, talvez, tentar imitar. Mas suas vidas são cada vez mais meteóricas… Como não me identifico com aqueles que me querem impor como ídolos, simplesmente não sei quem sou.

 

Na propaganda, no cinema, nos inúmeros filmes feitos para vídeo que levamos para o seio do lar, não só os corpos são perfeitos mas também estes são sempre vencedores. Na vida real… Algum dia os pais foram ídolos para os filhos, hoje, confrontados a super-homens e mulheres-maravilha, os primeiros estão em posição de cheque mate desde muito cedo.

 

Mentes doentias e sombrias, encarceradas em cubículos cinzas e cidades frias, talvez des-desejem o corpo real, escondam suas dobras flácidas e brancas, mas, isto não é uma regra: o corpo real, nu, torto, gordo e caído se exibe sem complexo, ou com algum complexo, mas verdadeiro e nu, se apresenta em público sem preconceitos e se expondo bizarro se impõe. Acredito que artistas, mostrando corpos "disformes", tais como Richard Billingham, Ron Mueck, Jenny Saville, Joel-Peter Witkin, entre outros, nada mais fazem do que escancarar o corpo do indivíduo-qualquer-um, isto é normal, isto é, longe das regras estéticas impostas ao corpo, hoje.

 

Aquele que teme o real, o presencial, também não se dará em telepresença.

 

A arte do motor (cinematográfica, vídeo-infográfica...) exterminou [...], mas também o gesto do artista que trazia primeiramente seu corpo – habeas corpus – estas artes corporais das quais o ator e o dançarino permanecem os vestígios esperando os estragos da virtualização coreográfica, a dança grotesca dos clones, dos avatares, a sarambanda incorporal de uma CIBER-ABSTRAÇÃO coreográfica que seria para a dança aquilo que a codificação da HIPER-ABSTRAÇÃO numérica já é para a pintura de cavalete”. [13]

 

Na performance em telepresença, o gesto do artista traz seu corpo, corpo espectral certamente, mas corpo presente e impuro, profano e apto a "presentação". Os artistas das artes corporais, em telepresença, talvez sejam apenas vestígios, com afirma Paul Virilio – preferimos chamá-los espectros – mas, estes vestígios estão repletos de subjetividade e prontos para a interlocução. [14] O cenário, a coreografia, a “CIBER-ABSTRAÇÃO coreográfica”, na performance art em telepresença, guardarão sua parte de real (o corpo próprio, o corpo próximo e o espaço próximo para cada ponto de recepção-emissão), terão sua parte de virtual (o visionado no computador ou na tela para cada ponto de recepção-emissão), e a parte de criação de cada um, esboçada em grupo, para aqueles que possuem os softwares para interação.

 

Não acredito que escolheremos a telepresença em vez da presença, quando esta se encontrar desenvolvida. Permito-me contar uma quase anedota: estava eu perdida e turista em Rennes em 1999… De fato não estava perdida pois estava com um amigo brasileiro e ali estava para participar de uma conferência internacional. Na tarde que nos demos para pela cidade perambular fomos em busca de postais para amigos e família e nos defrontamos com um postal que nos deixou entregues a reflexões, ambos desconhecíamos o dito que ali se inscrevia:

 

"O amor é cego, é preciso, então, tocar. Palavra de brasileiro”. [15]

 

Muito nos linsonjeia que outros pensem que apenas brasileiros sintam assim. Acreditamos que a presença física, capaz de cheiro e de carinho, capaz da voz real e de conversa sobreposta, jamais será inteiramente substuída pela telepresença, que sejamos brasileiros ou não.

 

Naturalmente comprei o postal e nunca o enviei. Nunca havia ouvido a frase, mas quantas saudades!

 

A experiência corporal em telepresença, por não permitir o tato, é incompleta, o olfato é, ainda, inexistente. De fato, a experiência da presença espectral é apenas fantasmal, imagem de baixa qualidade sem carne, sem a possibilidade de secreções e contaminações. No entanto, com a Internet e em telepresença relações podem ser mantidas, à distância. Este aspecto é apontado como negativo por alguns autores. As cartas escritas,enviadas por correio,também permitem a existência de relações entre seres humanos que não se viram décadas, e estas nunca foram consideradas negativas: as cartas são documentos importantíssimos quando pensamos nas correspodências entre grandes autores. Nunca foi considerado que escritores formavam guetos por terem assídua correspodênica com aqueles que podiam entender suas colocações.

 

Levinson, no artigo citado, lembra Freud para afirmar que "a escrita é a voz da pessoa ausente". A escrita, de certa forma, também permite a presença espectral, ainda que mais etérea, e não a tememos, mesmo que Sócrates, e recentemente Derrida,  nos lembrem de seus perigos como phármakón: remédio e veneno. A telepresença é da mesma ordem: veneno e remédio, no entanto, permitindo a comunicação em tempo real, ela se aproxima do diálogo, do qual Sócrates faz o elogio: palavra viva, lugar da interlocução, diria Doguet.

 

"Enquanto vivo, o lógos provém do pai. Não há, pois, para Platão coisa escrita. Há um lógos mais ou menos vivo, mais ou menos próximo de si. A escritura não é uma ordem de significação independente, é uma fala enfraquecida, de forma alguma uma coisa morta: um morto vivo, um morto em sursis, uma vida diferida, uma aparência de respiração; o fantasma, o espectro, o simulacro (…) do discurso vivo não é inanimado, não é insignificante, simplesmente ele significa pouco e sempre identicamente. Esse significante escasso, esse discurso sem grande responsável é como todos os espectros: errante". [16]

 

A telepresença é imagem espectral por não ser presença física. O espectro ao qual se refere Derrida é ausência do pai, não tem origem, é imutável e, como tal, morta. A telepresença é presença sensível, ela provém do pai, é lógos vivo.

 

 

   Performance Art em telepresença

 

"...sem dúvida, a obra improvisada (happening, fogo de artifício, dança, land-art) deixa rastros apenas na memória dos participantes; mas a verdade da obra está na experiência da presença, e não naquilo que a torna capaz de repetição". [17]

 

A  arte da performance é uma das linguagens da arte (talvez a mais não lingüística), ela é arte ao vivo, a arte da presença por excelência. Seu produto é processo e seu processo é efêmero, em princípio. O corpo é sujeito e objeto da "obra" de arte, mas todos os recursos e técnicas são simpáticos a esta arte multi- e trans-disciplinar. Ela é a linguagem que permitiu à arte tornar-se viva. Nos idos dos anos 70, ela se quiz presença e presença como revolução, revolução na arte que acompanha, de fato, os acontecimentos de 68, os hippies, a liberação sexual, o Rock'n Roll, …protesto contra o mercado e contra o mercado de obras de arte. A performance, em princípio, não produz objetos artísticos para este mercado, já que ela é efêmera, e, muitas vezes, centrada apenas no corpo dos artistas e não em objetos. A participação do espectador é um outro aspecto de muitas performances.

 

Hoje, a performance é uma das linguagens da arte: alguns artistas fazem dela sua única linguagem, outros a utilizam como mais uma possibilidade. Desde o advento do vídeo, muitos foram os artistas que trabalharam com vídeo-performance, notadamente Vito Acconci, que se utilizou desta tecnologia para fazer as primeiras performances em telepresença: a câmera e o artista em um local e o público diante do monitor em outro local. Atualmente, com a Internet e computadores dotados de câmeras e microfones, a performance em telepresença é uma linguagem artística que alguns vêem investigando. De fato, esta tecnologia vem evoluindo muito rapidamente e a "presença" em telepresença vem se tornando, a cada dia, mais consistente. No entanto, ainda devemos nos perguntar, até que ponto, em telepresença, o corpo – descorporificado - é apenas sensação de experiência, imaginação e a arte apenas objeto de idéia?

 

Como nos programas utilizados para a telepresença, cada "espectador" é também emissor e constrói sua própria tela, nestes o "espectador" torna-se efetivamente co-autor da obra. O trabalho se constrói como um verdadeiro diálogo vivo, como queria Sócrates, e, ainda que a escrita possa estar presente, ela é palavra viva.

 

   E' preciso que ressaltemos a necessidade de um trabalho crítico. As novas técnicas nos permitem experimentar o inédito. Este, necessariamente, causa encantamento, exatamente como nos contos de fada. O encantamento inibe a capacidade crítica. Há encanto pelo que desconhecemos e alguns, diante das primeiras experiênicas com novas tecnologias, por confrontarem-se com o novo, logo o denominam arte, esquecendo que a arte deve gerar perceptos e affectos, como queriam Deleuze e Guattari [18], ou ainda, devem trazer um mundo em si, como queria Mikel Dufrenne. [19]

 

"O elemento ausente, permito-me sugerir, é a pessoa humana. … A arte, …, tornou-se uma área em destruição na vida moderna, … trava uma batalha desesperada contra o desprezo e o abandono final das casas desertas. E' por isso que, com toda a nossa tão gabada eficiência mecânica, com toda a nossa superabundância de energia, alimentos, materiais, produtos, não tem havido qualquer melhoria proporcional na qualidade de vida quotidiana; é por isso que a grande maioria das pessoas "bem instaladas" da nossa civilização vive existências de apatia emocional e torpor mental, de insípida passividade e enfraquecimento do desejo – vidas que desmentem as potencialidades reais da cultuta moderna". [20]

 

De fato, vivemos em uma sociedade que apresenta sérios problemas, como nos adverte Lewis Munford, desde 1952 ( ! ), e com certeza a telepresença não será o instrumento para redimensioná-la, mas podemos esperar, como fez Munford, que, tornada arte, ela seja capaz de repovoar a vida e tornar presente a pessoa humana, gerando desejo de presença real e, aí sim e plenamente, permitindo na interlocução a restuição da subjetividade.

 

 

 

 



[1] Maria Beatriz de Medeiros é professora no Instituto de Artes da Universidade de Brasília, Doutora em Artes e Ciências da Arte na Universidade Paris I – Sorbonne (1998), Pós-doutora em Filosofia no Collège International de Philosophie, Paris (1999), desde 1992 é coordenadora do Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos que conta com o apoio do CNPq.

[2] Lembremos que estamos falando de uma comunicação plena de aspecto, de inarticulado (Wittgenstein), de indizível (Barthes), e não da teoria alemã da pragmática comunicacional (o primeiro Habermas).

[3] No dicionário brasileiro "Novo Dicionário Aurélio", encontramos como quinta definição de "linguagem" o que segue: "Tudo que serve para expressar idéias, sentimentos, modos de comportamento, etc. e que exclui o uso da linguagem."

[4] Irigaray, Luce. Être deux. Paris: Grasset, 1997, p. 50.

[5] Doguet, Jean-Paul, "Je, tu, nous. Contribution à une philosophie de l'interlocution", revista Les Papiers, n° 48, Collège International de Philosophie, Paris, julho 1999, p. 5.

[6] Segundo Bernard Stiègler,  "Se é verdade que desde a biologia molecular, o vivente sexuado é definido pela memória somática do epigenético e a memória germinal do genético, as quais, em princípio, não se comunicam entre elas (...), o processo de exteriorização é uma ruptura na história da vida da qual resulta a aparição de uma terceira memória que chamei epifilogenética. A memória epifilogenética, essencial ao vivente humano, é técnica: inscrita na morte. ... a experiência epigenética de um animal se perde para a espécie quando ele morre, no entanto na vida que prossegue por outros meios que a vida, a experiência do vivente, inscrita nos instrumentos (nos objetos), se torna transmissível e acumulável: é assim que se constitui a possibilidade de uma herança". Então, esta terceira memória, epifilogenética, é técnica, são imagens e textos inscritos sobre suportes, lembranças terciárias, tais como a escrita, a fotografia, o cinema,... "que testemunham de um passado legado por desaparecidos". STIEGLER, Bernard, La Technique et le Temps 2. La désorientation, traduzido por nós-mesmos, Paris: Galilée, 1996, p. 12.

[7] Paul Levinson, entrevista com Jeremy Turner: www.intelligentagent.com/Levinson_interview.html

[8] Eco, Umberto. Kant e o ornitorrinco. Ed. Record, Rio de Janeiro, 1997. Tradução de Ana Thereza B. Vieira. p. 313.

Na tradução francêsa, por Julien Gayrard, ed. Grasset,  Paris, 1997, lemos:

"Donc, et toujours d'un point de vue théorique, tout ce qui apparaît sur l'écran de télévision n'est signe de rien: c'est une image paraspéculaire que l'observateur appréhende avec cette même confiance que l'on accorde à l'image spéculaire.

[…] Nous ne nous méfions pas de la télévision car nous savons que ce ne sont pas des signes qu'elle nous fournit en premier lieu mais des stimuli perceptifs, comme le fait toute protése extensive et intrusive".

[9] N.T. Em inglês no original.

[10] Stiègler, Bernard. O preço da consciência, inédito. Bernard Stiègler é filósofo, autor de La technique et le Temps, dois volumes La faute d'Epiméthée, 1994 e La désorientation, 1996;  publicados pela editora Galillé, dois outros volumes a serem publicados em breve. Atualmente, Stiègler é diretor o IRCAM, Paris.

[11] Idem.

[12] HUISMAN, Bruno e RIBES, François. Les philosophes et le corps. Traduzido por nós-mesmos. Paris: ed. Dunod, 1992, p. 386.

[13] VIRILIO, Paul. La procédure silence. Paris: Galilée, 2000, p. 73 e 74.

[14] Não nos referimos a clones ou a avatares, pois estes não são objetos desta pesquisa.

[15] "L'amour est aveugle, il faut donc toucher. Parole de brésilien".

 

[16] DERRIDA, Jacques, A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 96.

[17] DUFRENNE, Mikel, artigo "Oeuvre d'art", in Encyclopaedia Universalis, vol. 12, Paris, 1980, pp. 13 a 18, p. 17.

[18] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Qu'est-ce que la philosophie? Paris: Minuit, 1991.

[19] DUFRENNE, Mikel. "Objet esthétique e objet technique", in Esthétique et philosophie. Tome 1. Paris: Klincksieck, 1967.

[20] MUNFORD, Lewis. Arte e técnica. São Paulo: Martins Fontes, 1986 (1952), p. 16 e 17.