Atualizações do homem.

Reflexões sobre algumas linguagens artísticas contemporâneas a partir da prática do grupo de pesquisa Corpos Informáticos.

 

 

Através da análise da prática do grupo de pesquisa Corpos Informáticos, este texto visa discutir a Performance –corpo, carne ao vivo-, o web-arte e as possibilidades da linguagem artística Performance em tele-presença.

 

O Corpos Informáticos é um grupo de pesquisa em arte contemporânea, em arte e tecnologia. Suas bases teóricas são aqui esboçadas visando uma análise mais ampla das linguagens artísticas contemporâneas que envolvem tecnologia.

 

Constituímos o grupo Corpos Informáticos na Universidade de Brasília com atores, performers, técnicos (técnicos em vídeo e em informática), e artistas plásticos. Seu objetivo primeiro era interrogar as possíveis relações entre, por um lado, o corpo real, o corpo-carne, o corpo presença, isto é, o corpo da linguagem artística Performance, aquele que atualiza o tempo real em uma arte perto do público, uma arte a não respeitar, a "tocar por favor", do outro lado, a tecnologia.

 

Nós falávamos de "novas tecnologias" e nós pensávamos a informática, as imagens numéricas, a tri-dimensionalidade destas, o espaço da rede mundial de computadores (o web) e nós pensávamos a promessa de uma comunicação integral em temo real por computador.

 

Sendo um trabalho pluri-disciplinar, interdisciplinar, ele só poderia ocorrer no seio de um grupo onde a individualidade traria sua especificidade, mas também aceitaria a promiscuidade desta. Na proposta do grupo sempre houve um grande interesse pelo conhecimento específico de cada um (teatro, artes plásticas, informática, vídeo, fotografia…), mas também houve sempre uma pesquisa em todas as áreas de conhecimento envolvidas por cada um dos membros do grupo, assim os pesquisadores da área de artes cênicas eram estimulados a se colocar atrás da câmera de vídeo e/ou na frente da ilha de edição, e aqueles especialistas do vídeo, ou da informática eram levados a atuar como performers.

 

As tecnologias que pesquisamos, hoje, não podem mais ser consideradas novas, ainda que elas sejam renovadas a cada dia em uma corrida insensata. [i] As ditas novas tecnologias são, na realidade, hoje, tecnologias onipresentes, onipresentes em todos os domínios.

 

O Corpos Informáticos, por razões financeiras que se impuseram, trabalhou intensamente com a tecnologia do vídeo. Nós trabalhamos em galerias, museus, espaços institucionais, isto é, espaços in-situ, mas acreditamos muito em um trabalho ex-situ, trabalhos em locais públicos, ou como quer Abraham Moles, espaços da polícia, os quais acreditamos serem espaços públicos: praças, rodoviárias… O próprio da linguagem artística Performance é acontecer ao vivo, na vida, e estar aberto à participação do público, por vezes tornando-o co-autor. A Performance em espaços públicos, por retirar o transeunte de seu quotidiano, por redimensionar os espaços, e conseqüentemente os hábitos deste, geram maior participação do público. O interesse da tecnologia numérica na rede de "comunicações" é a possibilidade de interação em tempo real; aspecto onde esta encontra a linguagem artística Performance.

 

Nosso desejo de trabalhar com performances, com um trabalho aberto à participação do público, nos levou a realizar em nossas exposições, depois das performances, discussões teóricas sobre certos aspectos do trabalho, entre nós certamente, mas também com o público: participação teórica do público, participação mais efetiva do público no trabalho do grupo.

 

            Mesmo trabalhando com o vídeo, o fio condutor da pesquisa foi mantido: investigação sobre a possibilidade de um "corpo informático", de um "corpo-carne numérico", possibilidade de sobrevivência de um corpo sensual e sexual, tornado imagem, ou melhor, um corpo tornado presença apenas pelo bombardeamento de raios luminosos gerando sensação de movimentos fantasmais. Desejo de presença real. Será que perceber que o desejo do outro existe já é capaz de gerar prazer, será que perceber que o desejo do outro, por mim, existe já é capaz de prazer estético? O belo se dá na imagem do outro na tela (do vídeo ou do computador), ou se dá no meu saber que aquele outro ali está por desejar estar comigo?

 

E nós estávamos juntos. Falo no passado por uma espécie de nostalgia de estarmos juntos fisicamente. O grupo existe ainda, e é desta possibilidade de estar junto sem ser fisicamente real, no entanto estando presentes que eu tento falar. Trabalhamos, por meios eletrônicos "juntos". E a saudades faz mal; contradição viva, necessária e irredutível.

 

 E nós estávamos juntos, em Brasília, e pensávamos o corpo real, ausente, presente pela tele-performance. Em 1996 Carla Rocha e Robiara Becker foram viver nos Estados Unidos expressando o desejo de continuarmos a trabalhar juntos. E assim fizemos, por telefone, por internet. Por telefone porque após diversas mensagens por e mail tornava-se necessário algo mais dinâmico, um falar mais perto, completar as lacunas que só a entonação da voz permite desvendar. Em termos wittgensteinianos diríamos, talvez necessitássemos do telefone por desejo de viver um "aspecto" do diálogo, por desejo de captar a ressonância do inarticulado na linguagem articulada, o tom, a entonação, que não é articulada na frase, que não está dita nas palavras. Um diálogo com a presença física do outro permitiria a leitura de outros aspectos, os expressos pelo rosto, muito valorizado por Wittgenstein, mas também o aspecto dos gestos, do corpo inteiro.

 

http://www.corpos.org

 

Um site-arte, não um site sobre arte, mas um site que falaria a linguagem do web, com os instrumentos do web, espaço interativo, arte, comunicação e não informação, foi o que fizemos, estando dois pesquisadores nos Estados Unidos e os outros em Brasília.

 

Quanto à reflexão sobre trabalhar em  espaços in-situ e ex-situ, deveria aqui caber a questão de saber se o web está condenado a ser espaço in-situ, de saber quando ele pode tornar-se ex-situ. Quando um trabalho feito na rede mundial de computadores poderia ele ser considerado in-situ?

 

Nós queríamos nos servir desta tecnologia como nós tínhamos utilizado nossos corpos nas performances: mise en scène dos instintos, deixar-se invadir por nossos próprios corpos. Mergulhar nas chuvas de verão é o que chamamos prazer. Nós queríamos nos servir da internet como nós havíamos utilizado o vídeo na vídeo-arte, em vídeo-performances e vídeo-instalações. Isto é, nós queríamos falar, fazer arte, através da especificidade de cada linguagem artística. Nós não queríamos tomar emprestado à  outras técnicas suas especificidades. Falo da forma como Toulouse-Lautrec, sem ter inventado a litografia –Senefelder inventou a litografia- revelou a linguagem artística da litografia tendo chegado à sua especificidade técnica. Senefelder inventou a litografia e a utilizou para baratear o custo do que era feito através da tipografia: livros, reprodução de textos. Toulouse Lautrec encontrou a especificidade da linguagem artística litografia, especificidade que faz desta linguagem uma linguagem da arte nossos dias, linguagem ímpar. Da mesma forma Man Ray, sem ter inventado a fotografia, criou uma linguagem específica da fotografia, uma linguagem artística específica. Artistas, professores e alunos, da Bauhaus também desenvolveram diversos aspectos específicos desta linguagem. Assim também Nam June Paik criou diferentes linguagens artísticas para a técnica do vídeo.

 

Quando entramos hoje em web-sites, nós percebemos que esta linguagem, tão nova, já está estereotipada. Muitos destes copiam a estética das criações sobre suporte-papel, copiam soluções de apresentação de jornais e revistas, por exemplo. E se copiam entre si. Ressentimos que há uma grande necessidade de pesquisa neste domínio, hoje. De acordo. Com outras técnicas passou-se mais ou menos a mesma coisa, isto é, elas nasceram copiando outras técnicas até chegar a encontrar suas especificidades enquanto linguagem capaz de arte. E' agora o momento de fazer pesquisas nas linguagens do web (html, java,…).

 

Depois de muitas discussões e experimentações, "concluímos" corpos.org O termo 'concluir' aparece, aqui, entre aspas pois o próprio do web-site é estar sempre em construção. Este caráter o torna efêmero de certa forma, e mais uma vez, esta linguagem artística se aproxima da Performance, como veremos. Artista, obra, público, são elementos estéticos da performance. O quarto elemento estético é o tempo. A performance artística dá-se no tempo, sua efemeridade é condição. Os registros serão apenas registros, cortes temporais. A performance estará irremediavelmente finda.

 

Canguillem assim se exprimiu sobre a especificidade do ser vivo:

"aquela de um sistema em equilíbrio dinâmico instável, entretido em sua estrutura de ordem por um empréstimo contínuo de energia dependente de um meio caracterizado pela desordem molecular ou então pela ordem paralisada do cristal." [ii]

 

Segundo Ilya Prigogine, físico, pesquisador, professor, escritor,

"O não-equilíbrio, não é absolutamente taças que se quebram, o não-equilíbrio, é a via a mais extraordinária que a natureza inventou para coordenar os fenômenos, para tornar fenômenos complexos possíveis". [iii]

 

Entendamos, como Prigogine, o ser humano como conjunto de ritmos longe do equilíbrio.

O ponto de partida para a concepção do web-site corpos.org foi a certeza que o espaço virtual é sobretudo um espaço que bota em cheque o conceito de dimensão, pois este 'di-' (elemento do grego di- “duas vezes” [iv], de dimensão) já é impregnado de um sentido de dualidade. O tridimensional permanece di-mensional, de certa forma. Nossa proposta joga com o conceito de dimensão fractal, uma "mensão" imensurável, ou a idéia de uma web-mensão.

 

Este raciocínio exclui toda possibilidade de linearidade. As tecnologias de "comunicação" atuais tornam visíveis conceitos por muito tempo esquecidos, entre estes o da impossibilidade de toda linearidade para o ser humano, amálgama daquilo que quiseram separar, isto é, amálgama do corpo com a alma, ser sensível e ser racional. Dois conceitos foram então, aqui, levantados: o da linearidade e o do ser-um. Todos-os-dois-um não se desenvolvem de forma reta, direita, concisa (nem para frente, nem em caminhos retos). Somente o bêbado tenta andar em linha reta, os sêres humanos andam por caminhos distorcidos, desvios e "flâneries". Para o filósofo francês Patrice Loraux pensamos, e andamos (para evitar o termo "progredir") em processos que desejam a heterogeneidade. Nesta seria melhor, primeiramente, evitar o método de Descartes, em seguida evitar toda identificação imediata e preferir a riqueza do imprevisto, e por último, certamente entre muitas outras reflexões que este pensador desenvolveria com muito humor, se deixar distrair por, isto é, vagabundear. De fato, esta é a forma pela qual pensamos, desenvolvemos raciocínios, sentimos e nos emocionamos. O espaço virtual é um espaço aberto para este tipo de procedimento. Este 'se deixar distrair por' cria a possibilidade do infinito, e afirma a liberdade que exige interstícios, dispersões. Patrice Loraux fala de "détournements, zig-zags et tâtonnements". Ilya Prigogine fala de "longe do equilíbrio".

 

Uma outra idéia esquecida pela cultura ocidental, à qual nos fazem pensar as novas tecnologias de informação e de comunicação, é o conceito mesmo de conceito. A "web-mensão" nos afirma definitivamente que não devemos mais buscar fundar, sobre bases sólidas, nossos conceitos. Queremos conceitos flutuantes, instáveis, evitando definições fixas, no universo de nossas percepções-emoções-pensamentos.

"O que é então a verdade? Uma tropa móvel de metáforas […] que depois de um longo uso são tidas por um povo como sólidas, canônicas credíveis: as verdades são ilusões que esquecemos ser como tal”. [v]

 

Um outro conceito, conceito flutuante, que nos fazem pensar estas tecnologias é o, tão pouco mencionado pela filosofia, conceito de nós. Sabemos hoje que não é possível pensar o mundo e nossa compreensão deste, nossa imersão neste, a partir de um sujeito, como quiz Descartes, sabemos hoje o quanto trazemos de tudo que nos foi ensinado e o quanto trazemos de tudo que aí estava quando chegamos. O indivíduo isolado não se desenvolve. Sem contato com o outro, com outros seres humanos não há florescer do si. Aconselha-se rever o filme "L'enfant sauvage" de Truffault, filme baseado em uma história real. E, as onipresentes tecnologias, assim como a arte e estas tecnologias, nos revelam que nada é trabalho de um só indivíduo. Trabalhos em mídias tais como CD-Roms, web-sites, computação gráfica, mas também instalações artísticas e vídeo-performances são muito, muito, raramente o trabalho de um único indivíduo. Nada é realizado por um indivíduo, pois antes de tudo este é processo contínuo sempre "resultante" de uma relação com o outro, então não mais eu, não mais sujeito, não mais gênio em ciências ou em arte. (Uma outra discussão se introduz aqui: o termo 'resultante' aparece entre aspas pois resultado seria apenas a morte, lá onde algo resulta daquele ser, embora, ainda assim, processos continuem a dar-se, visto que leio livros de autores mortos e este me modificam, logo de certa forma suas obras continuam sendo processo, ação).

 

A meu ver não há anterioridade do sujeito em relação ao outro, digo, o outro não é segundo em relação a mim, como afirma Foucault. Nesta compreensão do nós, o trabalho aqui discutido é trabalho do Corpos Informáticos, ele é "resultado" de uma pesquisa sentida-pensada em grupo. Este grupo se quer nós, no sentido estudado por Jean-Marie Doguet –que vai inclusive referir-se a um "nós originário"-; grupo, nós, onde o outro é reconhecido como capaz de compartilhar o prazer sentido frente ao belo, belo capaz de "dar prazer, universalmente, sem conceito" (Kant). E' preciso compreender que este universalmente, que o sentimento do belo institui como universalmente compartilhável, não se refere à um universal de fato, mas à uma "universalidade simbólica" (Gérard Lebrun), e uma universalidade sem conceito. Neste 'universalmente compartilhável' se compreende o outro como um igual, isto é, capaz, ou não, de compartilhar comigo, com todos o sentimento do belo, sem conceito. 'ou não' deve aqui demonstrar que se reconheço o outro como igual, isto é, capaz de julgamento estético, reconheço seu direito a não compartilhar com outros o sentimento do belo. Segundo Kant, relido de um ponto de vista contemporâneo, ao ressentir o prazer universalmente compartilhável me torno membro de uma comunidade onde todos têm os mesmos direitos, e são iguais.

 

Existem muitíssimos artistas que, trabalhando em grupo (artista plástico, engenheiros e técnicos em informática, músicos,…), em cooperação, insistem em assinar suas obras de seu único nome. Não somente artistas, mas físicos, matemáticos,… Existem raros artistas que trabalham sós, mas são realmente exceções quando nos referimos a arte e tecnologia.

 

O nós deseja o outro, e si-mesmo, capazes de secreções e contaminações. E é somente no seio de um nós que estes contágios, capazes de gerar heterogeneidade, pluralidade, prazer, arte, podem ocorrer. Nós, nós ressentimos a necessidade de uma nova e imensa consciência do nós em diversos domínios; artístico, certamente, mas também econômico, e sobretudo ecológico. O não-sucesso da reunião internacional da Organização Mundial do Comércio revela que diversos setores das diferentes sociedades, muitas associações e organizações, de certa forma, vêem tornando a consciência do nós efetiva.

 

No editorial, não assinado do jornal francês "Le Monde" de 5/6 de dezembro de 1999, "La victoire de Seattle", o autor afirma que o não sucesso da reunião da OCM é, na realidade, a vitória das Organizações não-governamentais (ONGs).

"Por sua presença, estas organizações não-governamentais fizeram ouvir a voz da opinião pública mundial, uma opinião que não deseja mais ser deixada de fora dos debates que lhe dizem respeito diretamente. No momento da rede das redes, a democracia não pode mais ser monopilzada por qualquer burocracia que seja, nem mesmo por Estados por mais democráticos que estes possam ser". [vi]

 

Foi necessário as OGNs estarem presentes, fisicamente presentes para se fazerem ouvir, mas a consciência desta necessidade de participar das discussões mundiais é fruto do que o autor chama de "momento da rede das redes", isto é, agora, no momento da rede mundial de "comunicação".

 

Eu dizia, a liberdade ama os interstícios, as dispersões, mas sobretudo ela ama o infinito; assim, também a "web-mensão".

 

De um lado a cultura ocidental sempre atribuiu à mulher a capacidade de se perder em seus pensamentos, a tendência à dispersão, à "flânerie"; designando ao homem a segurança, a firmeza, a objetividade, a retidão. Assim, a rede mundial de "comunicação" seria um espaço por excelência feminino, logo penetrável, infinitamente penetrável. Certamente nada disto são qualidades das mulheres, apenas a sociedade ocidental assim estereotipou a feminilidade: dispersão, "flânerie", fugacidade, volubilidade, maleabilidade, penetrabilidade: características do espaço virtual.

Estas reflexões nos aproximaram da dobra de Deleuze, e nós partimos então da dobra para a construção do corpos.org Tomamos emprestados certos conceitos de Gilles Deleuze, expandindo suas bordas, seus limites.

"Cada um se dobrando, mas também dobrando outros ou se deixando dobrar, engendrando retroações, conexões, proliferações, na fractalização desta infinidade infinitamente redobrada". [vii]

 

Nós pensamos mesmo na era das dobras, era das dobraduras (folding era). Não aceitamos o termo 'pós-biológico', hoje utilizado em larga escala, logo também não aceitamos a denominação de era pós-biológica. (Poderíamos voltar aqui a Nietzsche quando ele previne, de certa forma, que o uso de metáforas faz povos acreditarem que estas são verdades). Stelarc fala em homem pós-biológico. Christine Buci-Glucksmann também, no entanto esta última usa conscienciosas aspas para "pós-biológico". A idéia da impossibilidade de linearidade, da inexistência de progresso em frente sempre reto, a idéia da inexistência de pensamento linear, a idéia da dobra das formas de pensamento se dobrando umas sobre as outras, impedem toda a possibilidade da utilização do termo 'pós-biológico', seja para uma era, seja para o ser humano (o pós-humano só seria possível depois da morte do último ser humano, diria Derrida).

 

Primeiramente não existe 'pós', as coisas se entremeiam, se amarram, se transformam revivendo, as coisas morrem para sobreviver. Em seguida o implante permanecerá sempre implante, tecnológico se tecnológico (feito de materiais não-orgânicos), e biológico se feito de materiais vivos. Eu, pessoalmente não gosto das falsas metáforas que arriscam impregnar gravemente o significado das palavras.

 

Dobras e desdobramentos revelam o processo de pesquisa da sensação-emoção-pensamento artístico-científico atual onde a ecologia se dobra sobre a química, as matemáticas sobre a física, a filosofia sobre a psicanálise, a arte se dobra sobre a tecnologia, e estas ex-estanques áreas da sensação-conhecimento são entendidas como "camadas" instáveis porque permeáveis, penetráveis, capazes de novidade nesta interação, "camadas" de sensação-emoção-pensamento-conhecimento sobre os indivíduos, o nós, e o mundo; o todo em modificação (elaboração) contínua.

 

Nosso web-site se dobra sobre si mesmo sendo infinito visto a impossibilidade de repetição da mesma página. Ele permite animações interativas inéditas a cada "visita". Ele se quer presentação, e não re-presentação, dos conceitos flutuantes acima desenvolvidos.

 

Este trabalho de pesquisa teórico-prático, nosso web-site, foi, então, inteiramente realizado via rede de comunicações, em um verdadeiro comunicar, duro, porque entrecortado pela própria rede, no entanto intenso, porque desejo, logo capaz de gerar fluxo, influxo, refluxo, respiração, ritmos, longe do equilíbrio, vida.

 

Em janeiro de 1999 fui morar em Paris e, logo em seguida, Maria Luiza Fragoso mudou-se para Campinas, São Paulo. Hoje, nós continuamos trabalhando em grupo, o grupo vive, sobrevive àquilo que havíamos perseguido por tantos outros caminhos: a investigação da possibilidade do corpo real, presença, impacto, filtrado pela tecnologia, possibilidade de estar com apenas pela tecnologia.

 

Mantenho meu ponto de vista sobre o nós, ainda que estilhaçado, como capaz de gerar "longe do equilíbrio", o mais extraordinário meio que a natureza encontrou para tornar fenômenos complexos possíveis", entre eles o universo e sobretudo a vida, para falar como Prigogine.

 

Performance em tele-presença

 

Hoje são membros do grupo Alice Stefânia, Frederyck Sidou (Brasília), Maria Luiza Fragoso (São Paulo), Carla Rocha (Philadelphia, E.U.A), e eu. Nós fazemos sempre exposições… mas, sobretudo, web-diálogos. Se, eliminei o 'di-' de dimensão, para falar em uma web-mensão, devo aqui eliminar o 'di-' de diálogo e pensar um web-logo. Estes se dão por correio eletrônico, mas também por diversos outros softwares de comunicação em tempo real permitindo: texto em tempo real, texto e imagem ao vivo, ou texto, som e imagem. Estes dois últimos permitem a realização de performances em tele-presença. O web-logo dá-se neste três modos.

 

O web-logo se impõe entrecortado, o quotidiano parece arrancar o outro do espaço virtual. Ainda que desejo, ainda que prazer, ainda que encontro, a resposta à campanhia é física, imediata, automática, e rompe. Não há urgência na comunicação virtual: ninguém vai embora, ninguém vem, estamos lá-aqui sempre, pois aqui-aí não estamos. O trabalho evolui por síncopes… e grandes encontros.

 

As pesquisas em tele-performance exigem um maior engajamento, pois o equipamento exige do ser estar com, exige presença, e presença por vezes rude por causa da diferença de fusos horários. E' ainda o quotidiano que grita, que nos quer; o quotidiano, o palpável tem ciúmes da tele-presença, ciúmes do virtual. No entanto, a tele-presença se revela real, isto é quase-presença, quase-dotada do tocar, quase-dotada do aspecto, para falar em termos wittgensteinianos. Eu dizia que procurávamos o telefone pois ele pode buscar mais um aspecto do estar com que se perde em correios eletrônicos ou comunicações eletrônicas (por texto, ainda que em tempo real), isto é, a entonação, o que a linguagem articulada não traz. Em tele-presença, com a visualização e a escuta do outro, dos outros, podemos nos confrontar a mais aspectos linguagem inarticulada. Ainda que o corpo informático, ainda que o corpo numérico seja uma impossibilidade, ou uma "incompossibilidade", ele é capaz de quase-performance, capaz de comunicação de afecto (sic). Exatamente por revelar mais estes aspectos inarticulados na linguagem articulada, a tele-performance é capaz de encontro, capaz de prazer estético.

E' neste sentido que, se indagando sobre ícones e hipo-ícones, Umberto Eco, referindo-se à televisão em circuito fechado, chega à aparentemente espantosa afirmação:

"Então, e sempre do ponto de vista teórico, tudo o que aparece em uma tela de televisão não é signo de nada: é uma imagem especular que o observador apreende com esta confiança que damos à imagem especular”. [viii]

 

Compreendamos com Umberto Eco que o espelho simples é imagem especular, isto é, ela é um "duplo absoluto dos estímulos que nossos olhos receberiam se estivéssemos na frente do objeto" [ix]8, nela tipo e ocorrência coincidem. A imagem especular não mente, e não é marca. A marca, imagem fotográfica, por exemplo, é signo pois "envia à um conteúdo, e um conteúdo é sempre mais geral." [x] Ao que acrescentaríamos, a imagem da televisão em circuito-fechado ou em tele-presença, também é duplo absoluto do que receberiam nossos ouvidos. Na televisão, em circuito fechado, para Umberto Eco, e na tele-presença, para nós, a qualidade da imagem é inferior à imagem do espelho simples, logo existe alguma parte do caráter da imagem da televisão que seria da ordem do estímulo de substituição. No entanto, por oposição à imagem fotográfica ou cinematográfica, que são índices, que são do universo da significação ou da comunicação, a imagem televisiva em circuito fechado é prótese, fenômeno paraespecular, e ainda, prótese extensiva e intrusiva. Ao que acrescentaríamos que ela é, ainda, prótese magnificativa (démultipliantes, na tradução francesa). Então, concluindo com Umberto Eco, isto explicaria nossa tendência a confiarmos na imagem televisiva, a consumí-la sem barreiras, sem perceber suas estratégias interpretativas. A televisão, não sendo signo, como a fotografia e o cinema, levaria a não desconfiarmos dela, pois "não desconfiamos (quase nunca) de nossas percepções”. [xi] A análise de Umberto Eco vem confirmar o que afirmávamos com Wittgenstein.

 

Antes de continuarmos seria necessário voltar à questão da performance, e suas possibilidades em tele-presença, pois o termo performance nos coloca um problema-limite, como adverte Bert O. States. [xii] A evolução deste termo foi marcada por um processo caótico que nos obriga a retificar mais um detalhe.

 

Quando dizemos performance em tele-presença, nós nos confrontamos à duas utilizações do termo 'performance': aquele da linguagem artística, nascida nos anos 60-70, vinda das artes plásticas, do teatro e da poesia; e aquele da performance de uma máquina, performance, esta, medida em input/output (input: energia gasta, output: produção). Uma performance ótima de uma máquina é aquela que gasta menos energia para uma maior produção. [xiii]

 

Muitas vezes uma performance é ótima exatamente quando ela não se utiliza da melhor performance da máquina mas, ao contrário, quando ela inverte sua eficácia, desvendando o outro da máquina. Uma performance artística será ótima quando haverá o máximo de interação entre artista-obra-público, quando estes três elementos estéticos da performance terão seus papéis confundidos. O esforço físico tanto do artista quanto do público não será nem proporcional nem inversamente proporcional à "taxa" de interação, de comunicação.

 

 

O quarto elemento estético da performance, elemento estético como a linha e a cor são elementos estéticos da pintura, é o tempo. Este quarto não representa nenhuma ordem hierárquica com os três outros elementos citados anteriormente, talvez este, o tempo, seja o primeiro, hirarquicamente falando, elemento estético da performnace. A performance artística se dá no tempo, sua efemeridade é condição. Os registros permanecerão registros, e, por permanecerem, estarão semi-mortos, ainda que capazes de ressonâncias. Os registros são apenas obscuro reflexo, eco ensurdecido de um prazer estancado. Indices que tratamos como signos, isto é, dos quais desconfiamos, diria Umberto Eco. Documentação em vídeos e/ou fotografias são apenas fragmentos, cortes temporais, releituras em outras linguagens, linguagens documentais e/ou artísticas plenas de suas especificidades técnicas. A performance estará irremediavelmente finda.

 

Quanto à efemeridade citemos, para incitar à reflexão, Jean-Claude Ameisen, professor de imunologia na Universidade Paris VII, em seu artigo "No coração do ser vivo, a auto-destruição" publicado no jornal "Le Monde" afirma:

"(1) O envelhecimento progressivo de cada célula, à medida que ela dá nascimento à células mais jovens e fecundas; (2) a auto-destruição brutal de uma parte das células para o gozo de sobrevida do resto da coletividade; (3) o envelhecimento de um corpo capaz de gerar corpos novos: todos estes fins do mundo, dando nascimento à novos mundos, parecem variações do mesmo tema".

 

Uma performance artística, em nossa opinião, deve ser gesto único e irreprodutível, isto é, não-maquinal, não automático, não-mecânico. A diferença de vários artistas e pensadores da linguagem artística Performance, nós não consideramos rituais e manifestações folclóricas artes da performance. Tomemos Foucault em A ordem do discurso, o ritual é "a forma a mais superficial e a mais visível dos sistemas de restrições" [xiv], ele (o ritual) designa tanto as pessoas que falam, como seus gestos, comportamentos, circunstâncias, que signos, ritmos, etc.

 

Lembremos, a imagem do outro na tela é ascética, não ameaça, não é ainda capaz de morder, não sua, não tem cheiro.

 

A performance artística exige o reconhecimento de si no outro. Quais são as possibilidades de envolvimento com imagens e sons re-produzidos eletronicamente? Em tempo real vimos suas possibilidades por revelar aspecto, por ser paraespecular. Logo, quando o web é comunicação em tele-presença, ele torna-se rede mundial de comunicações (sem aspas). E imagens de corpos pré-gravadas, montadas, trucadas? Não podemos negar que imagens impressas, filmes, vídeos e sites eróticos excitam. O número de compradores destas imagens, e de visitantes destas páginas do web confirmam a capacidade destas de excitar, de provocar desejo de estar com. Desejo do outro, ou o outro do desejo? Possibilidade de prazer desinteressado? Kant responderia, certamente, que imagens eróticas, reproduções baratas não são capazes de prazer estético.

 

Voltemos a tele-presença: saber que o outro me deseja, sentir que o outro me deseja, o torna mais presente que o real? Voltemos à quase-presença, ao quase-real. Estas características não são uma particularidade da comunicação mediada pelas novas tecnologia. De alguma forma este quase sempre esteve lá.

 

Jean-François Lyotard acreditava que nenhum encontro era possível. Wittgenstein falava, se referindo ao que não pode ser dito através da linguagem articulada, de um resto. Uma espécie de dívida da linguagem articulada para com o que excede e que restará. Este resto não se revela também no 'quase' do quase-real, quase-presença? Este indizível (Barthes) é o que persegue a filosofia e a arte, cada uma em sua especificidade. Mas também a ciência persegue este desconhecido. Esta perseguição é consciente da impossibilidade de satisfação final. Este inatingível sempre esteve lá, ou dejà-là (Heidegger, Derrida), seja como aspecto (Wittgenstein), seja na presença, seja na ausência; e a linguagem articulada, ainda que aí incluamos gestos e gritos, não pode revelar.

 

Nós poderíamos nos referir também, emprestando palavras à Lyotard e Deleuze, à "incomensurável distância", criada pela mediação entre o que é, o outro (sujeito ou objeto), e o eu. Enfim uma fissura presente tanto na presença quanto na tele-presença, fissura plena de desejo (o lugar do desejo?), desejo de satisfação que sentimos-sabemos inacessível.

 

Para Heidegger, a técnica é "dévoilement" (retirar o véu), isto é, descoberta, desvendamento, do real; provocação de "dévoilement".

 

De um outro ponto de vista, a tecnologia, a técnica, é o elemento hominizador por excelência. Leroi-Gourhan não distingue a origem do homem da origem da técnica, como muito bem nos resumiu Bernard Stiègler em colóquio no Colégio Internacional de Filosofia, que cito:

“Leroi-Gourhan punha, no coração de suas análises da hominização, os conceitos de programa e de processo de exteriorização que detonam em grande parte a nova etapa do pensamento derridiano que expõe Da Gramatologia”.

Leroi-Gourhan mostrava

- que é impossível dissociar a antropogênese da tecnogênese,

- que esta tecnogênese persegue a conquista da mobilidade, isto é da vida, por meios outros que a vida,

- (…)

- que a exteriorização técnica do vivente assina a origem mesmo do homem,

- que o objeto técnico constitui como tal um suporte de memória (e a condição daquilo que Platão nomeou a hypomnésia)

- (…)" [xv]

 

Anthropogênese e tecnogênese se dão simultaneamente. Quando o homem deixa sua marca ele procura resistir à devastação de sua mortalidade (Hannah Arendt), e esta marca torna-se parte deste(s) homem(s), então parte daquilo que ele, o ser humano, compreende por si mesmo, por outro, por mundo, mundo do qual ele é apenas parte, pois já impregnado das marcas do passado, das marcas passadas. Stiègler as denomina "lembranças terciárias". Cada marca torna o universo mais complexo, são marcas que o homem infringe à matéria, mas também que infringe à mesmo, e se deixa infringir.

 

Assim todo traço, toda marca deixada pelo homem, todas as suas obras já são implantes, atualizações do homem como tal. Esta antrogênese infinita (insensata apenas se não levar em consideração o social), que procura atingir o inacessível, sempre esteve lá. Ela é a própria procura, interminável, da imortalidade do homem, ela é a procura do indizível, procura de resgate do resto. Ela é procura de encontro, encontro consigo mesmo, que só é possível, sempre permanecendo apenas promessa, através do encontro do outro, do outro-mesmo.

 

As novas tecnologias, as onipresentes tecnologias, toda técnica, sempre procurou este inacessível, que sempre esteve lá. Tomar consciência de sua existência é o que torna homem, é o que distingue o ser humano: promessa de encontro (inatingível), promessa de uma comunicação integral em tempo real.

 

 

 

 

 



[i] Corrida americana, inicialmente, de desenvolvimento tecnológico para o controle mundial da informação, da rede mundial de informações. Corrida já vencida pelos americanos, mas que permanece corrida, e para estes, e para outros, corrida infinita em aceleração infinita. Eu disse "rede mundial de informações", pois informação não é comunicação, ao contrário, os dois se opõem. Uma informação, uma vez verificada, morre. E ainda, podemos chamar informação este picadinho ralo de dados disparates? Informar exige pais que alguns fotogramas de desastres, de guerras, ou de enterros de reis, casamento de princesas… Comunicar quer dizer comunicar com, e comunicação de saber, de saberes, de sentimentos, de sensações. A internet nasceu se querendo espaço de liberdade, ou pelo menos, se dizendo espaço de liberdade, se querendo espaço de interatividade entre indivíduos e sociedades, hoje a Internet está cheia de filtros e de pedágios. E ainda, ela tende a tornar-se uma televisão numérica, meio unilateral de "informação". O "triunfo do espírito de mercado" escreveu Dan Schiller em seu artigo: "Bataille mondiale pour le contrôle des réseaux", Manière de voir, n° 46: "Révolution dans la communication", ed. Le Monde diplomatique, julho, agosto 1999, pp. 12 à 15, p. 15, traduzido por nós-mesmos.

[ii] CANGUILHEM, G., Idéologie et rationalité dans l’histoire des sciences de la vie. Paris: Ed. Vrin, 1977, p. 134, traduzido por nós-mesmos.

[iii] Prigogine, Ilya, Temps à devenir: à propos de l'histoire du temps.  Québec: Fides/Musée de la civilisation, , 1993, traduzido por nós-mesmos.

[iv] Dictionnaire Petit Robert. Pairs : Le Robert, 1982.

[v] Nietzscke, F. citado em Kunzmann, Peter; Burkard, Franz-Peter e Wiedmann, Franz. Atlas de la Philosophie. La pochothèque, Encyclopédies d'aujourd'hui, Paris, (1991) 1993, traduzido por nós-mesmos.

[vi] Ameisen, Jean-Claude. "Au cœur du vivant, l'auto-destruction" (paru dans Le Monde, le 16 outubro 1999, p. 16, traduzido por nós-mesmos.

[vii] DELEUZE, Gilles. Qu'est-ce que la philosophie?, ed. Minuit, Paris, 1991, p. 42, traduzido por nós-mesmos.

[viii] Eco, Umberto, Kant et l'ornithorynque", ed. Grasset, Paris, 1999, traduzido do italiano por Julien Gayrard, p. 384, traduzido por nós-mesmos. Na tradução para a língua portuguêsa (ed. Record, 1998), de AnaThereza B. Vieira, lemos "Assim, e sempre de um ponto de vista teórico, o que aparece na tela televisiva não é signo de algo: é imagem paraespecular, que é entendida pelo observador com a fé que damos à imagem especular", p. 313.

[ix] Idem, p. 377.

[x] Idem, p. 378.

[xi] Idem, p. 384.

[xii] States, Bert O, "Performance as metaphor", in Theatre Journal, março de 1996, p. 1 à 21.

[xiii] Poderíamos falar ainda do termo "enunciado performativo" de Austin, retomado por Lyotard em A condição Pós-moderna, mas tendo realizado esta análise em profundidade no texto "Bordas rarefeitas da linguagem artística performance e suas possibilidades em meios tecnológicos", publicado na revista "Performance", ed. Universidade de Brasília", 1998, organizada pelo grupo TRANSE, sob a coordenação de João Gabriel L. C. Teixeira, remeto à esta publicação para esta questão.

[xiv] Foucault, Michel, A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, ed. Loyola, São Paulo, 1996.

[xv] Bernard Stiègler, colóquio no Collège International de Philosophie, Paris, "Derrida et la Phénoménologie". A intervenção de Stiègler tinha por título "A fidelidade nos limites da desconstrução e as próteses da fé", traduzido por nós-mesmos.