Incubos e sucubos (incubare e sucubare):
demônios masculinos e femininos que vêm copular
com mulheres e homens durante o sono.
Longe do equilíbrio se produzem fenômenos coerentes. O não-equilíbrio é a via mais extraordinária que a natureza encontrou para tornar fenômenos complexos possíveis. A vida humana, reações químicas, relações sociológicas, econômicas... só são possíveis porque estão longe do equilíbrio. As inúmeras interações, as bifurcações da evolução, a não-linearidade dão a complexidade necessária à existência desses sistemas instáveis
“Campos de possibilidades”, diria Umberto Eco
Trata-se da teoria de Ilya Prigogine explanada em conferência pronunciada, em 1993, no Museu da Civilização, Quebec. Teoria que confronta a posição de Stephen Hawking. Ainda segundo Ilya Prigogine, a mistura de eventos e de regularidades é característica do universo. Existem regras, mas estas não são suficientes. São necessários eventos inesperados. E aqui, sempre construindo uma defesa da flecha do tempo, Prigogine toma a liberdade de citar a obra de arte para fundamentar seu pensamento sobre o universo.
Sabemos, hoje, que as redes de comunicação são um espaço virtual que multiplica as possibilidades de ‘vida’. Um lugar de comunicação, criação e interação: textos, imagens, imagens em movimento, hipertexto e, sobretudo, interatividade.
A consciência é, apenas, presente.
O rádio e a televisão fizeram muitos pensarem os meios de comunicação, no entanto, esses meios são apenas meios de difusão, meios de comunicação unidirecional, meios de informação com significante reduzido pelo próprio in-forma estabelecido pelo difusor. As redes de comunicação estão longe do equilíbrio, são complexas, logo, são um espaço que torna o ser, o fazer, o pensar e a flecha do tempo possíveis.
Participar das redes de comunicação implica em participar desse espaço-universo nascido do longe do equilíbrio. Tomar consciência dessas reflexões é imprescindível, no entanto, só a consciência não basta para tornar possível.
Faz-se necessário fundamentar essa consciência na prática cotidiana para que possam surgir linguagens artísticas do século XXI.
Nesse sentido, o trabalho em grupo, não só nas redes, mas no cotidiano, corpo a corpo, é imprescindível. Trabalhos desenvolvidos em grupo, apenas via rede, criam vácuos no universo das comunicações. Em um trabalho em grupo, o que se passa é o encontro com o outro, com os outros.
Nul ne peut imaginer la part de responsabilité que nous avons tous deux dans chaque phrase de cet ouvrage. Nous avons dicté de grands passages en commun: l’élément vital de cette dialectique est la tension de deux tempéraments intellectuels (ADORNO e HORKHEIMER, 1974, p. 9).2
O monólogo também é comunicação, comunicação consigo mesmo. O pensador é emissor e receptor. Muitas vezes, o monólogo tende “à tourner en rond”, mesmo se o sujeito está em contínua transformação. A confrontação com o outro é o que nos põe em questão. A confrontação com outros: universo.
Em um trabalho efetuado em grupo, o artista é espectador do outro, do outro membro do grupo, da criação e do público. Trezentas, quatrocentas vezes por dia encontramos o outro. O vazio, o desprezo. Ignorância ou tolerância. Nenhum olhar, neblina. Minha individualidade só e orgulhosa. Nenhuma troca, nenhum desafio. Onde estão os outros?
Muitos autores referem-se ao outro, ou ao encontro do outro. Nenhuma discordância foi assinalada no que se refere à intensidade desse encontro com o outro, um outro ser humano, por oposição ao encontro com coisas. Mikel Dufrenne fala de convite a uma resposta, convite a uma compreensão. Espera. Respeito pelo outro que nos ensina nossa própria interioridade. Jean-Paul Sartre nos fala do outro que nos torna objeto. Feitiçaria. ‘O inferno são os outros’. Christian Delacampagne vê no outro a ignorância, a impenetrabilidade.
Qual destas frases você já disse?
Não é rentável
Meu tempo está sobrecarregado
É uma questão que nos vem toda hora
A família é sagrada
Cada autor tem um diferente sentimento do encontro com o outro. Essa diferença parece insuperável, na medida em que cada pessoa é uma individualidade, individualidade em contínua transformação. Cada indivíduo, uma sensibilidade, nos proporcionará inúmeras degustações inéditas. Cada olhar é único e pode provocar uma infinidade de mutantes sensações, fundamentos do conhecimento.
Nas redes de comunicação, não há olhar, mas textos e imagens: o outro do texto e o outro da imagem (Barthes). No entanto, a experiência do outro é mascarada pela experiência do social. Tudo no outro é signo para interpretações estereotipadas: do cabelo ao sapato, do carro ao..., a linguagem, o sotaque, os gestos... Nas redes, o outro é incorpóreo e, conseqüentemente, desvinculado desses signos repletos de interpretações preconcebidas.
O olhar nos olhos é um primeiro contato. O segundo seria o tato que permitiria ultrapassar o social: encontro com o real. O cheiro é em geral melado pela marca de um perfume. O ouvido é em um primeiro momento apenas discurso. O encontro com o outro, olhar no outro, são relações mágicas como supôs Sartre. Mágicas porque imprevistas, indefiníveis.
Em um trabalho em grupo, a confrontação e o improviso escapam a todo controle preliminar. O outro é interioridade, sempre, de novo, desconhecida e aberta.
A intensidade do vivido em um trabalho em grupo, para o espectador e para os artistas, é diretamente proporcional à profundidade da troca estabelecida. (Leia-se troca em diversos níveis e não só em nível econômico; leia-se transferência, permuta, alteração, modificação, abandono). Funda-se um ecossistema com elementos em ritmos descompassados, mistura de eventos: longe do equilíbrio.
O Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos3 tem como uma de suas linhas de pesquisa a reflexão sobre a presença das novas tecnologias no mundo atual e as modificações que estas implicam na ecologia simbólica do indivíduo.4 É no seio de um trabalho em grupo, ou melhor, nos diversos seios de um grupo, de um trabalho translingüístico e pluriassinado que a arte é possível.5
Enquanto grupo, o Corpos Informáticos tem como centro Brasília, atualmente com membros estendidos de Campinas (SP) a Philadelphia (USA), e pesquisa desejando o longe do equilíbrio, inúmeras interações, bifurcações da evolução, não-linearidade. Fotografias, instalações, performances, videoperformances, trabalhos nas redes de comunicação, videoarte em ações pronóicas (em oposição às paranóicas). Em co-autorias promíscuas, evolui a pesquisa.
1 Texto publicado no catálogo da exposição de mesmo nome efetuada na Galeria da Caixa, Brasília, 1997. Ampliado e revisto.
2 Nínguém pode imaginar a parte de responsabilidade que nós temos, todos os dois, em cada frase desta obra. Ditamos grandes passagens em comum: o elemento vital desta dialética é a tensão de dois temperamentos intelectuais (ADORNO e HORKHEIMER, 1974, p. 9)
3 Equipe de pesquisa: Alice Stefânia Curi, Cila Mac Dowell, Carla Rocha, Frederyck Sidou, Gisele Alvarenga, Katiana Donna, Maria Luiza Fragoso, Milton Marques, Pedro Augusto.
4 Edmond Couchot refere-se à “economia simbólica do indivíduo”. Acreditamos que o simbólico seja mais complexo e dinâmico do que um sistema econômico, por isso preferimos a expressão “ecologia simbólica”.
5 O IN-SITU da arte (dos críticos aos curadores, das instituições aos próprios artistas) não é ainda capaz de perceber essa nova concepção do artista e, conseqüentemente, da arte, do objeto da arte e da parte do público.