Poéticas atuais: 2005



Maria Beatriz de Medeiros


Cyntia Carla Cunha dos Santos



Aisthesis


Estudar a estética, pensar a aisthesis, o que toca o sensível, é uma necessidade e mesmo uma urgência não só no Brasil como no mundo.1


Estética é a parte da filosofia que pensa o que afecta   tanto aquilo a que o ser humano é sensível (a pintura, o objeto, a ação artística) quanto o que se dá no íntimo do indivíduo afectado.


A estética, pois, diz respeito àquilo que afecta o sensível. O sensível não é aqui entendido apenas como sentimento, como sensibilidade. O sensível é o corpo todo e todo o corpo aberto ao mundo e inclui, necessariamente no corpo, a mente, o corpo da mente e com esta a inteligência, o inter-ligare: ligação do ser com o mundo que se dá pelo e através do sensível.


É através dos sentidos, do sensível, que aprendemos a estar e ser no mundo, e educar não é mais do que sensibilizar para a estética, para a aisthesis. Esse sensível, esse afecto não acontece somente nas artes, não é um privilégio da arte. Quando um cientista descobre uma fórmula, desvenda uma equação, ele também recente prazer estético, é o sensível que se emociona com o feito. Quando vemos um menino de rua e aquilo dói e marca, e somos afectados, é o sensível que está em jogo, não prazer estético, mas aisthesis.


E desde que Duchamp declarou “isto é arte, porque eu sou um artista”, ficou mesmo claro que o problema (ou a solução) da arte não era mais aquele de saber o que era o belo, mas aquele de saber o que era a arte. Arte que, segundo Deleuze e Guattari (1991, p. 154, grifos do autor)


é a única coisa no mundo que conserva. Ela conserva e se conserva em si (quid juris?), ainda que, de fato, ela não dure mais do que seu suporte e seus materiais (quid facti?), pedra, telha, cor, química, etc. [...] Aquilo que se conserva, a coisa ou obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e de afectos.


É nesse contexto que se insere o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos,2 cujas algumas das atividades desenvolvidas em 2005 serão relatadas a seguir.


Retorno contaminado


Nos últimos anos, o foco principal da pesquisa do Grupo tem sido a performance em telepresença, onde membros do grupo em diversos países, outros artistas e visitantes aleatórios do ambiente da rede mundial de computadores buscam relações e interações performáticas, geralmente com o enfoque no corpo e seus questionamentos na atualidade. Esses trabalhos são realizados em tempo real, via rede: são performances efêmeras. Ficam apenas os registros. Por estarmos na rede mundial de computadores, estamos expandindo nosso grupo pelo mundo.


Cada momento performático é único, sem repetição, criado a partir das necessidades de corpos reais em uma busca de outras possibilidades de toque e de percepção, desse modo surge o foco no/do corpo. Pode-se pensar e pesquisar em telepresença diferentes temas utilizando-a apenas como suporte, mas no Corpos Informáticos, ao longo do processo de pesquisa, é o corpo que toma espaço, o espaço da telepresença. É ele o outro que está em espera, atrás da tela, ansioso por comunicação, parado, à procura, apenas os dedos nervosos ao teclado. Na telepresença, esse corpo é convidado ao movimento, a sair da sua posição confortável de espectador e a investigar-se junto a outros corpos, corpos/mentes, sensibilidades perdidas por diferentes e muitas vezes desconhecidos pontos no globo.


Nesse processo, a rede mundial de computadores é suporte e agente, pois tudo se dá entre ela e nela. No instante, novos corpos surgem na tela, não como uma recriação do real, mas como mutação em outras formas, fragmentadas e distorcidas. Corpos mutantes que se surpreendem com suas formas e linhas, escondidas por anos de ausência.


Do instante em performance ficam vestígios e relatos, resíduos performáticos que servem de base para a continuidade dos questionamentos sobre o corpo e suas organizações em novos ambientes. É sob esses materiais que o grupo de pesquisa vem, nos últimos trabalhos, se debruçando, mas há também uma necessidade de retorno à matéria, de fiscalização e captura desses momentos e desse novo corpo que se inscreve.


Os registros, fotos, vídeos, chats e arquivos inteiros das telepresença capturados no computador são trabalhados e transformados em outras obras independentes, mas que carregam os elementos trazidos das interações em telepresença e suas distintas maneiras de pensar o corpo e suas comunicações. Esse retorno contaminado é mais uma maneira de amplificar as potencialidades do trabalho do grupo além de suas interações com o público, que passa a suspeitar a presença desse corpo modificado atual.


Ctrl C_CtrlC I


A videoinstalação Ctrl C_CtrlC I, realizada na galeria Fayga Ostrower/FUNARTE, do dia 24 de fevereiro a 20 de março de 2005, dentro do projeto Athos Visuais, não foi feita com base em registros de telepresença, mas contém algumas idéias retiradas destes.


O processo escolhido para a captura de imagens foi o da fotografia, mais especificamente a microfotografia. Como faz hoje a medicina, como faz hoje a ciência se voltando para o corpo como lugar, por excelência, da tecnologia, em especial o corpo feminino, uma das possibilidades na telepresença que queríamos evidenciar era o esquadrinhar esse corpo e transformá-lo.


Foram tiradas fotos de um único corpo em diferentes posições, o mais próximo possível, em uma tentativa de captar cada fresta e cada canto. Uma gota de suor, pequenas imperfeições expostas e amplificadas.


O que era imperceptível tomou aparência bizarra e desproporcional. Todo o mundo em um corpo. Irreconhecível e familiar. O meu corpo? Corpo feminino. Estranha floresta de pelos habitada por gotas úmidas, inesperada sinuosidade nas rachaduras das extremidades, gerando outras imagens e ângulos, até então inexistentes para o meu/nosso corpo. Aparecem formas distintas, novas partes do corpo que, paradoxalmente, sempre estiveram ali e que agora revelam outros desenhos e formas, por vezes abrindo-se como outras partes daquele corpo. Um espectro de corpo que camufla a si próprio revelando o escondido: da amplificação dos pequenos detalhes do corpo surgem novos corpos e curvas que recriam o desejo do corpo todo.


As massas e texturas reveladas nas fotos receberam mais intervenções: queríamos somá-las e sobrepô-las. De cada imagem única, aglomerado indefinido de poros e secreções, surgia a necessidade de reconstrução, não de um corpo inteiro, mas de frações deste em uma codificação imaginária para aquele material bruto, que de tão orgânico chegava às proximidades dos seres primitivos – amebas e platelmintos na pele.


Ampliado, esse corpo já abduzido de sua subjetividade foi cortado, picotado e remontado. Tornou-se uma linha de 5cm/32m: linha contínua, um corpo matematicamente segmentado, composto dos resquícios de pulsação que, aleatoriamente, se transformavam em ritmo, ao olhar. Essa quebra, contudo, não é capaz de subtrair das imagens sua organicidade, ao contrário, a pulsação de cada pequeno frame gera mais contato.


O resultado na instalação dessas interações entre o linear e o sinuoso foi uma fina linha contínua rasgando a parede branca; apenas uma linha de 5cm de altura, e que, a distância, tinha a aparência seca de uma seqüência de cores, mas que com a aproximação do espectador revelava-se carne e pele extremas.


Flutuando em um balanço, na mesma linha de visão da linha de imagens, uma televisão com o vídeo complementam a instalação. O vídeo, criado a partir dos trabalhos com as fotografias, revelava esse corpo intervisto. Sendo o vídeo também um recorte, joga com o olhar do espectador, lança um ângulo subjetivo, recriando o olhar do observador deslizando sobre a linha e continuando-a infinitamente.


Em outros momentos, no vídeo, o corpo bidimensional das fotos, através da intervenção da câmera, retoma sua tridimensionalidade. A imagem da imagem recria o real. A imagem pulsa na tela.


As imagens muitas vezes mais carnais que o próprio corpo se abrem a cada novo olhar, que, na busca pelo corpo, se perde na soma das múltiplas imagens ou no correr os olhos por esta linha: corpo segmentado quase infinito.


Ctrl C_CtrlC II


A exposição coletiva Situações Brasília/mirações, realizada no Conjunto Cultural da Caixa, em Brasília, do dia 23 de fevereiro a 25 de março, também foi uma oportunidade de utilização de outras linguagens, que não a performance em telepresença, no trabalho do grupo, que, mais uma vez, parte de um lado do corpo real visto, visitado, quase invadido no mínimo detalhe, por outro lado da mídia digital. Assim, a videoinstalação Ctrl C_CtrlC II é uma continuação dos processos de captura de imagens do corpo através de recursos do computador, aqui o scanner.


O scanner é comumente usado para digitalizar imagens e textos bidimensionais. Queríamos a matéria viva digitalizada: o corpo apreendido por essa ferramenta. Ao copiar algo, o scanner também trabalha a noção de tempo: a luz violenta percorre o objeto, lentamente, capturando um pouco deste a cada instante, uma pequena movimentação e o todo da imagem se perde, ela se torna quebrada, sem definição. O scanner não foi feito para captar o que se move, apenas figuras estáticas.


Poderíamos ter investido, nesse primeiro momento, na quebra de regras e na movimentação, mas esses processos ficaram para a performance Scanner, que descreveremos a seguir. Nessa instalação, nos detivemos em transformar o corpo-movimento em corpo estático para que pudéssemos captar seus detalhes e sutilezas, trabalhando depois com essas movimentações em intervenções físicas diretamente nas imagens já existentes. Mas era a luz do scanner que se movimentava sobre o corpo imóvel, submisso.


O processo do scanner lambendo com luz o corpo inerte em posições bizarras fez surgir o vídeo: um vídeo relacionado com essa iluminação e com a idéia de tempo envolvida na movimentação crepuscular do scanner (edição: Renata Barreto). Enquanto todas as partes do corpo eram scanneadas, a câmera registrava a passagem daquela luz seqüenciada e contínua que sem a presença explícita do scanner transformava-se em um feixe linear de luz atravessando o corpo indefinido. O claro e escuro de linhas arredondadas deixavam aparecer o que poderia ser um corpo (celeste?) iluminado em sua órbita. O ritmo do vídeo gerado aumentava a noção de passagem do tempo. A luz lenta vasculhava o corpo e retornava rápida se esvaindo; a luz lenta vasculhava o corpo e retornava...


O mesmo tempo aludido no vídeo se fez presente nas imagens scanneadas: a pele marcada de pintas e rugas pelo tempo, o cabelo, cada detalhe, parado, tudo parece congelado pela passagem da luz. O material escolhido para a impressão das fotos foi o papel vegetal, translúcido, que permite a passagem da luz da instalação que sutilmente modifica a textura do papel aproximando-o de uma segunda pele, formando a linha contínua na parede. Da mesma forma como na exposição Ctrl C_CtrlC 1, dispusemos as impressões sobre papel vegetal na parede de forma a obter uma linha. Aqui ela dava a volta toda da sala (5/5m). Linha translúcida da pele do corpo, do corpo da pele: alinhamento perfeito (40cm/20m).


As imagens foram fixadas na parede apenas por sua parte superior: o papel vegetal solto trabalhava com a umidade, com o ar condicionado: o corpo se soltava da parede, respirava, estava quase vivo.


O jogo entre pele viva e luz temporal evocado pelos elementos da videoinstalação foi alterado pela presença da performance efetuada durante o vernissage. Algumas imagens da pele foram retiradas da linha da parede por performers do grupo e sofreram cortes e fissuras. Os cortes eram limpos e feitos com a ajuda de equipamento cirúrgico: luvas, bisturis e réguas de aço. Cortadas, as imagens foram recosturadas com alfinetes e colocadas de volta na parede.


O ciclo se quebra, a linha contínua é desestruturada por novos resquícios, agora, da pele esquartejada e essa nova geometria acidentada recria movimentação para a instalação. O corpo estático do scanner acorda com outras possibilidades de movimento geradas pela presença dos performers. Em um processo de construção/desconstrução daquele corpo, surge uma pele fragmentada pela ação do tempo. O corpo fenda no tempo, como o corpo que se encontra em telepresença, no instante entrecortado pelo suporte da telepresença, é recriado na instalação pela presença da performance.


Sintagmas


Sintagmas, instalação realizada nas pilastras das marquises do Complexo Cultural FUNARTE dentro do projeto Athos Visuais: marquise brasiliense longa que cruza o Eixo Monumental quase de lado a lado; marquise surrealista que vai de nenhum lugar a lugar algum. De quase todos os lados o verde gritando. Ali não havia possibilidade de utilização de tecnologias, mas uma necessidade: sair da galeria e ocupar o espaço urbano.


A intervenção na marquise, que estava exposta aos transeuntes e podia ser vista a distância, de carro, surgiu como uma nova possibilidade de buscar o corpo da telepresença em um terreno desconhecido, mas tão próximo quando se fala de conceitos sobre corpo. Aqui também optamos pela fotografia como base do trabalho. Essa fotografia foi também distorcida e retrabalhada. A foto perfeita com imagem bem definida das outras exposições foi substituída pela fotocópia e sua possibilidade de infinitas reproduções.


A perfeição dos corpos femininos ideais impressos nos outdoors em escala industrial é objeto de desejo, se confundindo com as marcas e objetos que anunciam. O corpo-marca vendável está exposto sem sutilezas. Como colocar no ambiente público o corpo pleno de desejo do real, sem cair facilmente no apelo do consumo? Voltamos ao corpo em telepresença e a forma como este joga, em performance, com as potencialidades do próprio suporte subvertendo sua função habitual.


Hiperampliadas, as imagens dos detalhes de corpos fotocopiados se transformavam em formas granuladas de claro/escuro e, sendo trabalhadas em baixa qualidade, ocultavam, na geometria inicial, os trechos de corpos, pedaços de um mesmo corpo, que se aproximavam do sensual pelos ângulos originais, mas que ao serem recortados abriam-se para novos olhares que tentavam completar o desenho sinuoso. O que vinha depois da dobra, contudo, era uma outra dobra resultante da cópia infinita/finda de um corpo reproduzido e produzido através da repetição de padrões. As imagens de Sintagma, impressas espelhadas, criavam padrões geométricos que só se transmutavam em pele aos olhares mais atentos.


Novamente o corpo sensual foi instalado na forma de uma linha; uma linha formada pelas imagens coladas em cada pilastra. A perspectiva das 32 pilastras mostrava o corpo fragmentado. Esse podia ser visto dos carros que circulavam no Eixo Monumental e nos retornos.


A permanência dos trabalhos de intervenção urbana gerou modificações na instalação e, como todas as propagandas coladas grosseiramente em colunas de concreto, algumas imagens foram arrancadas no decorrer da exposição. A performance dos passantes tem o mesmo efeito da feita pelos performers do grupo em Ctrl C_CtrlC II: o corpo rasgado, agora, sem cuidados cirúrgicos, a repetição quebrada, sem reparos, dando lugar ao momento do desvio.


Esse trabalho gerou outra intervenção urbana realizada, em Brasília, na passarela 109/209 Norte: as mesmas imagens, a mesma linha. Por iniciativa do GPCI, foram chamados cerca de trinta artistas que, em 8 de agosto, realizaram o A.CON.TE.CIMENTO (http://corpos.blogspot.com em 08/06/2005). As imagens foram ainda enviadas ao Experiência de Imersão Ambiental (EIA) e se tornarão intervenção urbana em São Paulo pelas mãos de outros artistas.


O retorno à telepresença: Ctlc C_Ctrl C III


O trabalho analisado agora é resultado indireto da telepresença, mas toma caminhos distintos: a partir da performance em telepresença Cílios, realizada anteriormente com a participação do grupo de pesquisa ADaPT (Association for Dance and Performance Telematics).


A base para esta performance foi o olhar que, atento, varre a tela de computador. Todo o corpo resumido a dedos e cílios que se movem diante da tela em uma concentração nas extremidades. Surgiu, então, a idéia do cílio como apêndice, descolado do olho; os cílios postiços cobiçados pelas drag queens por despertarem vontades e desejos, sendo levados aos seus extremos: colocados sobre a própria pele, local do desejo.


Estávamos interessados no toque sutil, o toque sem sentir. O cílio, porta de entrada do olhar, o olho do observador despertando o desejo de penetrá-lo e multiplicá-lo.


Sempre em telepresença, o grito dos cílios nos corpos foi passado também para o vídeo: enormes cílios tocam o corpo, então dúzias de cílios se transformam em aranhas e o corpo coberto de aranhas feitas de papel toma ares de mutante. O novo corpo mutante experimenta suas articulações movendo-se diante da tela do computador; o corpo inteiro pisca com incontáveis olhares de pele focando toda a sala e buscando materializar o toque imaterial do olhar para a tela. Desejo do olhar, olhar do desejo; a pele vê através de seus jovens apêndices o tocar silencioso da luz azul da tela.


A impossibilidade da descrição detalhada dos acontecimentos múltiplos da performance em telepresença recria e multiplica imagens geradas nos olhares dos interatores e foi partindo dessas visões subjetivas que diferentes processos foram criados dessa performance.


Em um primeiro trabalho, um vídeo foi criado diretamente das imagens da performance em telepresença. O vídeo Ctrl C_CtrlC III foi apresentado na exposição O corpo na arte contemporânea, na galeria do Itaú Cultura, em São Paulo, e buscava apreender as sensações evocadas pela performance através da edição de suas imagens. As movimentações no vídeo intercalavam imagens da tela em telepresença com imagens gravadas dos performers no momento da performance. A cada mudança, a telepresença se apropria mais da imagem da câmera. No final do vídeo, apenas a imagem do computador resiste modificada pela simbiose com o real.


O segundo trabalho foi um vídeo sem a presença ativa de imagens da tela do computador, mas feito com imagens captadas no momento performático. No vídeo .Cílios (lê-se ponto cílios), apresentado na exposição Humano-pós-humano, no Centro Cultural Banco do Brasil, de 12 de julho a 18 de setembro de 2005, o corpo se mostra mais cruamente, a imagem não está distorcida ou possui a baixa qualidade da telepresença, o corpo nu tem apenas seu novo elemento: cílios. A imagem é aberta e quase todo o corpo fica aparente, as movimentações sinuosas da câmera e do corpo são interrompidas no limiar, deixando o espectador em espera. No quase corpo, a sensualidade resiste na negação do fim e na incapacidade da apreensão da totalidade do toque.


Uma outra obra relacionada à mesma performance foi uma quase continuação dessa, feita para uma instalação do Corpos Informáticos no evento HTMlles, em 20 de maio de 2005, em Montreal, Canadá. Nessa performance, os corpos cobertos de cílios desaparecem diante da floresta de extremidades de olhos e ressurgem nas pequenas telas da sala do programa iVisit (ivisit.net). Um dos focos da performance foi a busca por novas aberturas de câmera (web-cam) para que corpos inteiros ocupassem a tela, geralmente habitada pelo detalhe e por pedaços indefinidos de corpos que não se revelam completamente. Nessa performance, os corpos em movimento reivindicam sua totalidade para presentarem-se com suas novas aderências de inseto ou lagarta recobertos de pelos-cílios multicoloridos e suas pigmentações de camaleão geradas pela inconstância das cores no projetor multimídia que multiplica fractalmente essas novas criaturas nelas mesmas. O extremo deslocado, transformado e multiplicado. Este, o sentido? Que sentido? O sensível.


Sinapses


Sinapses foi realizado na exposição coletiva Cinético_digital do Itaú Cultural, em São Paulo, de 05 de julho a 11de setembro de 2005. Na abertura da exposição, uma performance em telepresença foi realizada diante dos visitantes, sendo que estes eram convidados a participar da performance na instalação, composta de um scanner, imagens impressas sobre papel vegetal, uma projeção, um computador e um televisor localizados no subsolo. No salão térreo, um outro computador. A ação criou uma interação com a instalação Ctrl C_CtrlC II, pois os mesmos elementos (scanner, alfinetes e imagens) serviram de princípio para as interações da performance.


O scanner, agora, é movimento sobre o corpo que se move também, gerando imagens distorcidas: corpo prolongado pelo movimento da luz que o captura. Novamente o scanner deixa de ser objeto em cima de uma mesa e ganha o espaço de diferentes formas, mas aqui para acompanhar o corpo em performance.


A imagem da pele transparente é copiada por uma maquiagem na pele real, que agora possui uma camada translúcida de uma outra pele não sua (irreal). Na telepresença, essas duas materialidades distintas se confundem criando verdades momentâneas e desejos alimentados de camadas opacas de realidade distorcidas pelas possibilidades da busca incansável do outro. A presença real dos performers diante dos visitantes abria esse véu de possibilidades e podia-se acompanhar um dos muitos ângulos do acontecimento performático sem, contundo, apreender-lhe como um todo, seguro na imaterialidade da tela onde não existe uma verdade a ser dita.


Durante o resto da exposição, a gravação dessa performance permaneceu projetada como um registro do acontecimento.


Para sermos mais conclusivos sobre os trabalhos efetuados pelo Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, em 2005, será necessário mencionar a instalação Estar, realizada no 5a Bienal do Mercosul: uma sala de estar virtual (3 computadores on line de 9 às 21 horas) e uma sala de estar real (sofás, poltronas, cadeiras, porta-retratos, luminárias, vasos de plantas vivas, enfim, um ambiente de sala de estar), ambas interativas, ambas abertas durante mais de dois meses. Nossos computadores, mas também todos aqueles que baixavam o programa ivisit.net puderam participar.


Ver a Bienal em telepresença, nosso espaço, todos os dias, conversar com os interatores diariamente, ver que alguns internautas em Berlim ou na Holanda se tornarem habitués da sala, conhecer as pessoas que trabalhavam lá como mediadores e que tomaram a instalação para si, foi realmente incrível. A proposta de sala real/sala virtual se tornou proposta viva de fato e pudemos estar com os visitantes (on line ou na Bienal) por internet, diariamente, ver, participar de todas as interações.


Ainda o corpo


Nesses trabalhos com diferentes suportes e materiais, vimos possíveis interações entre a performance em telepresença e outras formas de criação e como estas podem ser alteradas por mútuas contaminações, modificando também seus caminhos na construção da noção de corpo.


O corpo manipulado e manipulador do desejo, em telepresença, que se reencontra com a matéria através da imagem na parede ou do corpo real em performance. Resultante dessas interações, corpos fragmentados e desconstruídos aparecem, ressurgem corpos que se quer em movimento, em processo de mutação, metamorfoseados na lagarta colorida e no mutante de coluna picante. Corpos contaminados de mutações expandem-se do espaço infinito/restrito da tela e, em reconstruções fragmentadas, encontram outras formas de expressão.


Aberto ao toque, o corpo esquartejado se apropria de seus detalhes retomando-se para criar um corpo fractal infinito em cada poro. O veredicto é abandonado e dá lugar ao processo. A máscara sensual grita. Visto por outros olhares, corpos mutantes se misturam voltando ao corpo/desejo


A busca por um novo corpo continua na esperança de que este não seja encontrado ou catalogado, abrindo espaço para mais questionamentos sobre o corpo, suas arestas e o desfile bizarro de corpos multifacetados e imperfeitos. Ficam desses contatos com a telepresença as diferentes possibilidades de gerar um trabalho que não se esgota naquele instante, mas que só precisa dele para existir.



1 Em livro intitulado Aisthesis: estética, educação e comunidades (Chapecó: Argos, 2005), procurei não definir, mas delinear as bordas do sentido atual, possível, para o termo ‘estética’.

2 Equipe de pesquisa: Alexandre Cerqueira, Maria Beatriz de Medeiros, Carla Rocha, Cyntia Carla, Francisco Rah, Maicyra Leão, Marta Mencarini, Pablo Braz e Renata Barreto.