Web-arte e www.corpos.org

 

O Corpos Informáticos, em 1996, desejando ter independência em suas pesquisas sobre as possibilidades da rede mundial de computadores, criou o www.corpos.org .

Queríamos e ainda queremos um site-arte, não um site sobre arte, mas um site que fale a linguagem da rede mundial de computadores, com os instrumentos da rede, espaço interativo, arte, comunicação, e não informação.

Queremos nos servir dessa tecnologia tal como nos vestimos nas performances: mise en scène dos instintos, deixando-nos invadir por nossos próprios corpos. Gostaríamos de usar a internet, assim como utilizamos o vídeo na videoarte, em videoperformances e videoinstalações. Isto é, queremos falar de arte, fazer arte, através das peculiaridades de cada linguagem artística, e não tomar de empréstimo, a outras técnicas, suas especificidades.

Exemplificando: Senefelder inventou a litografia, tendo chegado à sua especificidade técnica, e a utilizou para baratear o custo do que era feito através da tipografia: livros, reprodução de textos, rótulos de embalagens. Ele inventou a litografia para fazer tipografia. Já Toulouse-Lautrec usou os recursos da litografia para fazer arte. Da mesma forma, Man Ray, sem ter inventado a fotografia, criou uma linguagem artística específica da fotografia. Artistas, professores e alunos da Bauhaus também desenvolveram diversos aspectos característicos desta linguagem. Assim também, Nam June Paik criou a videoarte revelando particularidades dessa tecnologia inventada para fins de espionagem e vendida com fins comerciais, a saber, a televisão. Em termos de imagem e transmissão, a essa técnica foi criada com objetivos figurativos e para invadir os lares. Ao torná-la abstrata e colocá-la no espaço da arte, Nam June Paik se apropria de suas positividades técnicas e a traz para o território sem fronteiras da arte.

Quando entramos hoje em web-sites, percebemos que essa linguagem, tão nova, já está estereotipada. Muitos sites copiam a estética de criação sobre suporte-papel, copiam soluções de apresentação de jornais, revistas e livros. E se copiam entre si. Ressentimos que há uma grande necessidade de pesquisa nesse domínio. Como colocamos, outras técnicas passaram mais ou menos pelo mesmo processo, isto é, elas nasceram copiando outras técnicas até chegarem a encontrar suas especificidades enquanto linguagem capaz de arte. É agora o momento de fazer pesquisas nas linguagens da rede mundial de computadores.


www.corpos.org

Depois de muitas discussões e experimentações, ‘concluímos’ corpos.org/folds. O termo ‘concluir’ aparece entre aspas, pois é próprio do web-site estar sempre em construção. Esse caráter o torna efêmero, de certa forma, e assim essa linguagem artística se aproxima da performance, performance art. Artista, obra, público são elementos estéticos da performance. O quarto elemento estético é o tempo. A performance artística dá-se no tempo, sua efemeridade é condição. Os registros serão apenas registros, cortes temporais. A performance estará irremediavelmente finda.

 Georges Canguillem (1997, p. 134) assim se exprimiu sobre a especificidade do ser vivo:


Aquela de um sistema em equilíbrio dinâmico instável, entretido em sua estrutura de ordem por um empréstimo contínuo de energia dependente de um meio caracterizado pela desordem molecular ou então pela ordem paralisada do cristal.

 

Como citado anteriormente, segundo Ilya Prigogine (1993, p. 47), físico, pesquisador, professor e escritor:


O não-equilíbrio não é absolutamente taças que se quebram, o não-equilíbrio é a via mais extraordinária que a natureza inventou para coordenar os fenômenos, para tornar fenômenos complexos possíveis. 


Entendamos, como Prigogine, o ser humano como um conjunto de ritmos longe do equilíbrio.

 O ponto de partida para a concepção de corpos.org/folds, nossa primeira página, foi a certeza de que o espaço virtual é, sobretudo, um espaço que põe em xeque o conceito de dimensão (palavra de origem latina), pois esse ‘di’, se mal entendido, isto é, como elemento do grego, significa ‘duas vezes’ logo estará impregnado de um sentido de dualidade. Mas, de fato, esse ‘di’, em dimensão é, naturalmente de origem latina, logo, significa “movimento para diversos lados” (ROBERT, 1982). O espaço da web, para o Grupo de Pesquisa Corpos Informáticos, é um espaço que dá potência a este sentido de dimensão.

Nossa proposta joga com o conceito de dimensão fractal, uma ‘mensão’ imensurável, ou a idéia de uma web-mensão, uma verdadeira ‘di’ (movimento para diversos lados) mensão. Essa ‘mensão’ exclui toda possibilidade de linearidade. As tecnologias de ‘comunicação’ atuais tornam visíveis conceitos por muito tempo esquecidos, entre eles o da impossibilidade de toda linearidade para o ser humano, amálgama daquilo que quiseram separar, isto é, amálgama do corpo com a alma, ser sensível e ser racional.

Dois conceitos foram, aqui, levantados: o da linearidade e o do ser-um. Todos-os-dois-um não se desenvolvem de forma reta, direita, concisa (nem para frente, nem em caminhos retos). Somente o bêbado tenta andar em linha reta, os seres humanos andam por caminhos distorcidos, desvios e flâneries.

Para os filósofos francêses Patrice Loraux e Jean Maurel1 pensamos e andamos em processos que desejam a heterogeneidade. Nesta, seria melhor, primeiramente, evitar o método de Descartes (tal como o veiculam estereotipadamente). Relendo o Discurso sobre o método, vemos que Descartes afirma que, se estivermos perdidos na floresta, devemos andar, sempre, em linha reta (ad tempura), evitar toda identificação imediata e não preferir a riqueza do imprevisto e, certamente entre muitas outras reflexões que esses pensadores desenvolveram com muito humor, evitar se deixar distrair por, isto é, vagabundear. Isto se aplica, sim, se estivermos perdidos em uma floresta, procurando a saída, como sugere Descartes.

Mas pensamos, desenvolvemos raciocínios complexos, sentimos e nos emocionamos exatamente quando nos permitimos deixar ficar na floresta, isto é, identificar cada detalhe, deixar-se levar pela riqueza do imprevisto, distrair-se, vagabundear. O espaço virtual é um espaço aberto para esse tipo de procedimento. Esse “se deixar distrair por” cria a possibilidade do infinito e afirma a liberdade que exige interstício, dispersão. Patrice Loraux e Maurel falam em “détournements, zig-zags et tâtonnements”. Ilya Prigogine fala em “longe do equilíbrio”.

 Uma outra idéia esquecida pela cultura ocidental, e que nos leva a pensar as novas tecnologias de informação e de comunicação, é o conceito mesmo de conceito. A ‘web-mensão’ afirma definitivamente que não devemos mais buscar elaborar, sobre bases sólidas, nossos conceitos. Queremos conceitos flutuantes, instáveis, evitando definições fixas no universo de nossas percepções-emoções-pensamentos.


O que é então a verdade? Uma tropa móvel de metáforas […] que depois de um longo uso são tidas por um povo como sólidas, canônicas credíveis: as verdades são ilusões que esquecemos ser como tal (NIETZSCHE apud Burkard, FRANZ-PETER; Kunzmann e Wiedmann, 1993).

 

Um outro conceito, conceito flutuante, que nos faz pensar sobre essas tecnologias é o tão pouco mencionado pela filosofia: o conceito de nós. Sabemos hoje que não é possível pensar o mundo e nossa compreensão deste, nossa imersão neste, a partir de um sujeito. Sabemos hoje o quanto trazemos de tudo que nos foi ensinado e o quanto trazemos de tudo que aí já estava quando chegamos. O indivíduo isolado não se desenvolve. Sem contato com o outro, com outros seres humanos, não há florescer do si. E as onipresentes tecnologias, assim como a arte e essas tecnologias, nos revelam que nada é trabalho de um só indivíduo. Trabalhos em mídias, tais como CD-Roms, web-sites, computação gráfica, mas também instalações artísticas e videoperformances, são muito, muito raramente o trabalho de um único indivíduo.

Na realidade, nada é realizado por um indivíduo, pois antes de tudo esse é processo contínuo sempre ‘resultante’ de uma relação com o outro, então não mais eu, não mais sujeito, não mais gênio em ciências ou em arte. (Uma outra discussão se introduz aqui: o termo ‘resultante’ aparece entre aspas, pois resultado seria apenas a morte, lá onde algo resulta daquele ser, embora, ainda assim, processos continuem a dar-se, uma vez que lemos livros de autores mortos e esses nos modificam, logo, de certa forma, suas obras continuam sendo processo, ação). 

Acreditamos que não há anterioridade do sujeito em relação ao outro, ou seja, o outro não é segundo em relação a mim, a nós, como afirma Foucault. Nessa compreensão do nós, o trabalho aqui discutido é o do Corpos Informáticos, ‘resultado’ de uma pesquisa sentida-pensada em grupo.

O nós deseja o outro e si-mesmo, capazes de secreções e contaminações. E é somente no seio de um nós que contágios, capazes de gerar heterogeneidade, pluralidade, prazer, arte, podem ocorrer. Nós, nós ressentimos a necessidade de uma nova e imensa consciência do nós em diversos domínios: artístico, certamente, mas também econômico e, sobretudo, ecológico.

 Diríamos: a liberdade ama os interstícios, as dispersões, mas, sobretudo, ela ama o infinito, assim também a ‘web-mensão’.

 De um lado, a cultura ocidental sempre atribuiu à mulher a capacidade de se perder em seus pensamentos, a tendência à dispersão, à “flânerie”; designando ao homem a segurança, a firmeza, a objetividade, a retidão. Assim, a rede mundial de comunicação seria um espaço por excelência feminino: penetrável, infinitamente penetrável. Certamente, não se trata de características apenas das mulheres. A sociedade ocidental assim estereotipou a feminilidade: fugacidade, volubilidade, maleabilidade, penetrabilidade: características do espaço virtual.

Essas reflexões nos aproximaram da dobra de Deleuze (1991, p. 42) e partimos dessa dobra expandindo suas bordas e seus limites para a construção do corpos.org/folds, primeira página do site. Cada um se dobrando, mas também dobrando outros, ou se deixando dobrar, engendrando retroações, conexões, proliferações, na fractalização dessa infinidade infinitamente redobrada.

 Nós pensamos mesmo na era das dobras, era das dobraduras (folding era). Não aceitamos nem o termo ‘pós-biológico’ nem o termo ‘pós-humano’, hoje utilizado em larga escala. Também não aceitamos a denominação de ‘era pós-biológica’. Poderíamos voltar aqui a Nietzsche quando ele previne que o uso de metáforas faz os povos acreditarem que estas constituem verdades. Stelarc fala em homem pós-biológico. Christine Buci-Glucksmann também. No entanto, esta última usa conscienciosas aspas para ‘pós-biológico’.

A idéia da impossibilidade de linearidade, da inexistência de progresso, da inutilidade de tentar andar sempre em frente, em linha reta, a idéia da inexistência de pensamento linear, a idéia da dobra das formas de pensamento se dobrando umas sobre as outras, impedem toda possibilidade da utilização do termo ‘pós-biológico’, seja para uma era, seja para o ser humano. O pós-humano só seria possível depois da morte do último ser humano, diriam Jacques Derrida e Bernard Stiègler.

 Primeiramente não existe ‘pós’, as coisas se entremeiam, se amarram, se transformam. Revivendo, as coisas morrem para sobreviver. Em seguida, o implante permanecerá sempre implante, tecnológico se tecnológico (feito de materiais não-orgânicos) e biológico se feito de materiais vivos. Eu, pessoalmente, não gosto das falsas metáforas que arriscam impregnar gravemente o significado das palavras.

 Dobras e desdobramentos revelam o processo de pesquisa da sensação-emoção-pensamento artístico-científico atual onde a ecologia se dobra sobre a química, a matemática sobre a física, a filosofia sobre a psicanálise, a arte se dobra sobre a tecnologia, e essas ex-estanques áreas da sensação-conhecimento são entendidas como ‘camadas’ instáveis porque permeáveis, penetráveis, capazes de novidade nessa interação; ‘camadas’ de sensação-emoção-pensamento-conhecimento sobre os indivíduos, o nós e o mundo; o todo em permuta (per-mutare) contínua.

 www.corpos.org/folds se dobra sobre si mesmo, sendo infinito face à impossibilidade de repetição da mesma página. Ele permite animações interativas inéditas a cada “visita”. Ele se quer presentação, e não representação dos conceitos flutuantes acima desenvolvidos. 

Este trabalho de pesquisa teórico-prático, nosso web-site, foi inteiramente realizado via rede de comunicações já que a web-master Carla Rocha vivia nos Estados Unidos e o grupo em Brasília. Um verdadeiro comunicar entrecortado pela própria rede, no entanto, intenso, porque desejo, logo, capaz de gerar fluxo, influxo, refluxo, respiração, ritmo, longe do equilíbrio, vida.


 Depois foram criadas as páginas:


- www.corpos.org/quecorpo:

web-master: Viviane Barros

som: Rodrigo Salgado

texto: Bia Medeiros

imagens: Corpos Informáticos (1992-1995) e Bia Medeiros (performances 1985-1988)

descrição: Análise crítica do estado do corpo, tornado inatual pela atualidade. Crítica à publicidade e aos meios de informação (televisão, rádio).

data de idealização : 2002.


- www.corpos.org/papers:

web-master: Suzana Curi e Carla Rocha

concepção: Bia Medeiros e Suzana Curi

descrição: Tendo uma similaridade com o folds em sua estética, é o local onde são publicados os textos sobre o grupo em francês, inglês, português e espanhol.

Permanentemente atualizada.


- www.corpos.org/telepresence2:

web-master: Luiz Alves

som: Rodrigo Salgado

concepção: Bia Medeiros e Luiz Alves

imagens: Corpos Informáticos.

descrição: Simulação de telepresença realizada com cerca de 900 imagens retiradas de performances em telepresenças anteriormente realizadas.

data de idealização: 2003.


- www.corpos.org/teleperformance:

web-master: Viviane Barros

imagens: Diversas telepresenças do Grupo.

Descrição: Apresentação de diversos trabalhos de performance em telepresença com referências (2000-2003).

data de idealização: 2003.


- www.corpos.org/ctrlcctrlc79:

web-master: Francisco Rah

texto: Diversos chats retirados de momentos de performance em telepresença.

imagens: Diversas telepresenças do Grupo.

descrição: Apresentação de diversos trabalhos de performance em telepresença.

data de idealização: 2005.



Conclusão


É necessário que pesquisas sobre a especificidade técnica da rede mundial de computadores se intensifiquem e busquem torná-la um espaço de fato de geração de outras linguagens para a arte e, especialmente, lugar para/da intersubjetividade (ver texto sobre telepresença). O nós, ainda que estilhaçado pelas tecnologias de informação de massa (televisão, rádio), permanece capaz de gerar longe do equilíbrio, sendo o mais extraordinário meio que a natureza encontrou para tornar fenômenos complexos possíveis, entre eles, o universo e, sobretudo, a vida, para falar como Prigogine.


 


1 LORAUX, Patrice e MAUREL, Jean. Traits et portraits de philosophes em artistes. Notas de aula, Seminário de mesmo nome, Collège International de Philosophie, Paris, 2000.